Queimadas e neblina: combinação fatal

A soma dos dois fenômenos a uma série de desacertos resultou em um acidente grave na BR-277 em São José dos Pinhais. Oito pessoas morreram.

Capa / 28 de Setembro de 2020 / 0 Comentários
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“Meu Deus, como ficarei sem as minhas duas filhas? Como falo isso para a minha esposa?”. O vídeo de um pai desesperado viralizou, na noite de 2 de agosto último, durante um engavetamento ocorrido na BR-277, na altura do KM 77, em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba (PR). Segundo o Corpo de Bombeiros, oito pessoas morreram e mais de 20 ficaram feridas no acidente, que envolveu 23 veículos.

Tudo começou com uma colisão sem gravidade entre uma motocicleta e uma viatura da Polícia Militar (PM). Com a pista interditada para o atendimento à ocorrência, os carros que vinham logo atrás precisaram parar no acostamento. De acordo com a Polícia Rodoviária Federal (PRF), embora eles tenham ligado o pisca-alerta, o motorista de um caminhão não conseguiu ver o que acontecia na rodovia, já que a visibilidade foi prejudicada pela combinação de neblina e fumaça vinda de uma queimada na região. O veículo pesado, então, atropelou as pessoas que aguardavam às margens da pista e saiu arrastando automóveis e motocicletas. Outros veículos que vinham atrás também colidiram.

“Foi um acidente muito grave. Pessoas que estavam no local relataram uma cena de terror: moto voando com o impacto e o caminhão avançando sobre os carros e em um ponto de ônibus. Sem dúvida, uma situação triste que expôs pontos importantes:

excesso de confiança do motorista e tomadas de decisões erradas dos órgãos de assistência”, critica o transportador autônomo Claudemir Travain, criador do canal Realidade de Caminhoneiro.

Na avaliação dele, o condutor do caminhão provavelmente foi confiante demais, já que conhecia bem o trajeto. “Meu objetivo não é mostrar culpados, pelo contrário, é discutir situações para evitar acidentes. Contudo, como é uma região que tradicionalmente apresenta neblina, e teve ainda a fumaça de queimadas próximas, era preciso reduzir muito a velocidade, mas não foi o que aconteceu. Além disso, houve negligência, pois a concessionária deveria ter interditado antecipadamente o trecho ao identificar a fumaça. As queimadas já estavam acontecendo havia dias. Já a PM deveria ter orientado as pessoas a buscarem um local seguro. Em vez disso, elas saíram dos veículos e acabaram sendo atropeladas”, diz o motorista.

Em nota, a assessoria regional de comunicação da Polícia Rodoviária Federal assegurou que, “ao chegar ao local, a PRF reforçou os trabalhos de sinalização e orientação do trânsito que já estavam sendo feitos por equipes da concessionária e do Corpo de Bombeiros”.

RECORRÊNCIA

O trecho da rodovia em que aconteceu o acidente é administrado pela Ecovia, do grupo EcoRodovias. O gerente de atendimento ao usuário da concessionária, Marcelo Belão, conversou com a reportagem da Entrevias. Ele contou que, entre 25 e 27 de julho, foram identificados focos de incêndio fora da faixa de domínio da rodovia. Segundo ele, funcionários da empresa, militares do Corpo de Bombeiros e agentes da PRF fizeram intervenções nesses pontos. “Todo o incêndio foi extinto. Porém, no dia do acidente, devido a uma especificidade da vegetação da região, o processo de combustão continuou no solo, gerando fumarolas. O vento as levou para a rodovia e, associadas à neblina, comprometeram a visibilidade. Identificamos esse fenômeno e, prontamente, encaminhamos uma equipe para ajudar na sinalização da pista que tinha maior fluxo no momento. No entanto, o engavetamento aconteceu no sentido contrário”, afirmou Belão.

O gerente destacou que nunca havia presenciado uma situação parecida. “O que ocorre naquele local é uma combustão lenta e gradual sem a presença de fogo. Por conta da atual estiagem no Paraná, o solo se mantém seco e segue liberando constantemente uma fumaça. Combinada com o nevoeiro, que é típico das regiões úmidas e de várzeas, essa fumaça produziu na noite do dia 2, pela primeira vez, uma superneblina, fenômeno atípico, inusitado e que não havia sido registrado na concessão anteriormente, interferindo na visibilidade”, explicou.

A excepcionalidade descrita por Belão, contudo, causa surpresa, visto que há mais de 20 anos a concessionária atua na região. Além disso, o Paraná – assim como acontece em outras partes do Brasil – enfrenta anualmente estiagens nesta mesma época. Em 17 de julho (data em que é celebrado o Dia de Proteção às Florestas), inclusive, a Ecovia fez uma campanha para alertar sobre os riscos de queimadas. A empresa afirmou que, somente nos últimos meses, equipes atuaram em 30 princípios de incêndio ao longo dos trechos concessionados. “Os meses de julho e agosto historicamente são os mais críticos por serem os mais secos. Por isso, a concessionária está redobrando os cuidados e o monitoramento”, disse à época.

Informações compiladas pelo Sistema Digital de Dados Operacionais do Corpo de Bombeiros paranaense mostram que, desde o começo deste ano, foram registrados 6.425 casos de incêndio em vegetação, sendo 1.145 às margens de rodovias – uma média de um a cada quatro horas e meia. Em São José dos Pinhais, foram 22 ocorrências nas proximidades das BRs 116, 277 e 376.

DEPOIS DA TRAGÉDIA

Entre os dias 3 e 4 de agosto, a PRF e a Ecovia precisaram interditar a BR-277 novamente, no mesmo trecho da ocorrência anterior, por causa da fumaça e da falta de visibilidade. A interdição durou aproximadamente três horas e se estendeu por dois quilômetros nos dois sentidos da rodovia.

A medida foi tomada para evitar novas tragédias e, segundo o gerente de atendimento ao usuário da concessionária, não houve diferença entre os protocolos adotados no dia do acidente e nos dias seguintes.

INVESTIGAÇÕES

O Departamento de Estradas de Rodagem paranaense (DER-PR) e a Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Paraná (Agepar) pediram informações à Ecovia sobre as causas do engavetamento. A Polícia Civil também investiga o caso “com total apoio e cooperação por parte da PRF, que trabalha na constante revisão de seus procedimentos, a fim de reduzir a ocorrência de acidentes. A partir desse caso, especificamente, estamos buscando reforçar a divulgação das orientações de condução em situações de restrição de visibilidade por todos os canais aos quais temos acesso”, assegurou a assessoria da PRF.

A Agepar informou que solicitou imagens das câmeras que registram o fluxo na rodovia e está monitorando os levantamentos para apurar as causas da série de colisões. Já a Sulista, empresa para a qual o motorista do caminhão prestava serviço, afirmou que, no momento do acidente, ele iniciava uma viagem para São Paulo após um fim de semana de descanso com a família. Logo depois do ocorrido, uma equipe da empresa se deslocou para o local para prestar assistência ao profissional.

A Polícia Civil informou que está analisando as condições do condutor do caminhão e as informações do tacógrafo do veículo.

AÇÃO E REAÇÃO

Em um artigo científico, o biólogo Romildo Gonçalves, especialista em queima controlada e planejamento ambiental, explica que é fundamental analisar os efeitos do fogo. “Quando ocorre um incêndio, a temperatura das camadas superficiais do solo sobe. A taxa e a profundidade reais do aquecimento dependem da quantidade de umidade e do tipo de incêndio. Durante uma queimada na superfície, as temperaturas quase sempre excedem os 100°C e podem subir a até 720°C por curtos períodos de tempo”, detalha Gonçalves.

No caso das rodovias concedidas, as concessionárias precisam seguir as Diretrizes Básicas para Elaboração de Estudos e Projetos Rodoviários estabelecidas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Conforme previsto no documento, as empresas devem “definir e coordenar o conjunto de princípios, normas, tarefas e seus executores que tem por fim a implantação das ações/atividades previstas pelo plano ambiental. Para maior objetividade, o gerenciamento ambiental deve envolver três componentes básicos: supervisionar, fiscalizar e monitorar”.

As diretrizes também determinam a necessidade de se fazer “o mapeamento geológico da área estudada, indicando as ocorrências de materiais de construção e as informações preliminares, as zonas de solos talosos, as zonas de sedimentares recentes e as zonas de instabilidade que necessitem de estudos especiais de estabilização com caracterização da natureza do material”. O Dnit orienta ainda que o projeto contenha a descrição geológica da região estudada, detalhando a situação geográfica, o clima, o solo e a vegetação.

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