Rede do bem

Associações de proteção patrimonial formadas por caminhoneiros somam mais de 40 anos de trabalho em prol da segurança, possibilitando a atuação dos transportadores e o desenvolvimento econômico do país

Capa / 31 de Março de 2021 / 0 Comentários
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Constantemente, os caminhoneiros estão expostos a condições precárias e à violência das rodovias, bem como a outras situações adversas que colocam em risco tanto a vida deles quanto a integridade do caminhão, utilizado não apenas como fonte de renda, mas para movimentar a economia e promover o desenvolvimento da sociedade. Apesar da sua importância socioeconômica, o transporte rodoviário de cargas enfrenta muitos desafios estruturais, como o custo elevado do combustível, a alta carga tributária e a defasagem do frete. A esses fatores ainda se podem acrescentar a manutenção periódica e o conserto dos veículos em casos de acidentes, além das tradicionais seguradoras, que cobram caro pelo serviço prestado.

Foi justamente em função desse último aspecto – e da falta de interesse das empresas do segmento em atender o transportador – que nasceu um modelo inovador de proteção veicular, baseado na colaboração entre caminhoneiros, para avalizar a segurança e as boas condições de trabalho para a categoria.

“A primeira associação de proteção veicular surgiu no Brasil na década de 80, em Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, por meio do cegonheiro Guilherme dos Santos Venâncio. Graças ao seu conhecimento e à sua atuação, foi apresentada uma proposta aos cegonheiros, que, até então, eram totalmente excluídos do mercado securitário. Nenhuma empresa queria fazer o seguro dos veículos deles. Foi daí que despontou a necessidade de se unirem para formar um grupo sólido e de confiança recíproca”, relembra um dos pioneiros da gestão desse modelo, Geraldo Eugênio de Assis, mais conhecido como Havengar, que, atualmente, preside o Sindicato das Associações de Auxílio Mútuo dos Transportadores de Carga e de Pessoas do Estado de Minas Gerais (SindMútuo-MG), a Prevenir Proteção Veicular e o grupo de resgate voluntário Anjos do Asfalto/MG. Ele também é o vice-presidente da Federação Nacional das Associações de Caminhoneiros e Transportadores (Fenacat) e da Prevenir Truck.

Se, por um lado, o mercado de seguros excluía a categoria, por outro a união foi o caminho para a solução. Venâncio trabalhava como transportador de automóveis na Sada Transportes e iniciou uma mobilização para ratear os custos em caso de acidentes com os caminhões. “Quando acontecia um incidente, fazíamos uma espécie de ‘vaquinha’ para que o colega tivesse condições de arrumar o veículo e voltar a trabalhar. Isso foi ganhando força, pois todos acreditavam na ajuda mútua”, relembra o cegonheiro, fundador da Associação de Proteção e Ajuda ao Colega (Apac) Norte – atual conselheiro fiscal da instituição – e vice-presidente do Sindicato dos Cegonheiros de Minas Gerais (Sintrauto/MG).

O protagonista do modelo conta que, no começo, a iniciativa funcionava sem um regulamento específico, mas com uma relação de confiança entre os profissionais, já que todos trabalhavam no mesmo setor havia vários anos. Com a adesão de mais transportadores, o negócio foi ganhando visibilidade e legitimidade, e Venâncio conseguiu implementar o desconto na folha de pagamento e outras melhorias.

Já em 1987, outra entidade do segmento iniciou as suas atividades em São Paulo: o Fundo de Assistência ao Caminheiro Autônomo, conhecido como Faca.

Evolução

Em 2003, deu-se início à evolução do sistema. Os cegonheiros, com a otimização dos custos operacionais advinda da ajuda mútua, passaram a adquirir caminhões em outros modais de transporte – entre eles tanque, carga seca e baú – mesmo diante da crise econômica que o país atravessou em meados daquele ano.

Como naquela época o grupo era exclusivo para a categoria e funcionava muito bem, Marcio Antônio Arantes, dono de uma empresa de transporte-cegonha e baú, solicitou ao então secretário-geral do Sintrauto/MG, Geraldo de Assis, que criasse um modelo formal de proteção para outros tipos de veículos, já que o sistema considerava caso a caso.

Em uma assembleia geral na Cooperativa dos Cegonheiros de Minas Gerais (Coopercemg), ainda em 2003, surgiu a primeira associação de proteção patrimonial devidamente constituída no Estado sob a gestão de Havengar, que também presidia a Coopercemg, e diversos outros diretores.

“O Venâncio idealizou a Apac, unindo profissionais da Sada e da BF Transportes. Fui convidado a atuar para organizar os processos, e a profissionalização da gestão permitiu melhorar os serviços, conseguir mais benefícios para os associados e aprimorar a assistência e o atendimento”, diz Arantes, presidente da Apac Sul.

O sistema deu tão certo que, em pouco mais de seis meses, já havia ultrapassado os 2.000 caminhões cadastrados. Para fazer parte, os caminhoneiros tinham que ser indicados por dois integrantes da cooperativa, que, de certa forma, validavam os futuros associados.

Inspiração

Bem-sucedida, a proposta despertou o interesse de profissionais em outras regiões do Brasil, e o regimento interno e o estatuto elaborados por Assis foram replicados por diversas pessoas e oferecidos ao mercado, inclusive os de veículos automotores e motocicletas. Assim, nos últimos anos, centenas de associações surgiram no país.

Com o aumento do número de instituições que atuam nesse modelo, foi criada uma federação para reunir os interesses das organizações de ajuda mútua. Minas Gerais – no eixo Betim/Itapeva –, então, mais uma vez foi palco de uma mobilização para a criação de uma instituição que representasse nacionalmente o sistema: a Fenacat.

Inicialmente, o objetivo era regular a atuação das entidades para oferecer segurança jurídica a elas. Na época, um número expressivo de associações se filiou. Contudo, para manter a essência da ajuda ao transportador, a federação exigiu que as diretorias de suas filiadas fossem formadas por caminhoneiros, e, assim, muitas acabaram sendo rejeitadas.

Legitimidade

Essa postura da Fenacat converge com o objetivo de excluir pseudoentidades que, a partir do discurso de proteção veicular e ajuda coletiva, lesam os associados. “Os princípios que regem as associações legítimas são a solidariedade entre todos, o apoio recíproco e voluntário das pessoas e a boa-fé dos participantes. Essas diretrizes vão ao encontro do mutualismo, que existe há pelo menos 2.000 anos. Com o intuito de garantir a sobrevivência de um grupo, seus participantes se uniam, em arranjos mais ou menos complexos, de forma que um garantisse o outro. Tal como uma família defende os seus integrantes, o mutualismo defende as pessoas sujeitas aos mesmos riscos”, contextualiza Havengar.

A análise do especialista, que é referência nessa área, reforça a importância da regularização e do monitoramento das associações. A Fenacat atua desde 2009 no regramento das instituições. Naquele ano, a federação consultou um dos maiores especialistas em direito civil, que emitiu um parecer sobre a legitimidade do sistema de proteção veicular de ajuda mútua. Desde então, a diretoria da entidade vem tecendo uma articulação política para implementar um projeto de lei que garanta segurança jurídica às associações.

“A história da Fenacat é alinhada ao desenvolvimento das associações que, de fato, garantem a atuação do transportador. Defendemos o verdadeiro associativismo e buscamos em Brasília a regulamentação do segmento para evitar que pessoas sejam lesadas por indivíduos de má-fé, que acabam estragando a imagem do sistema de auxílio mútuo”, enfatiza o presidente da federação, Luiz Carlos Neves.

Legalidade

É importante destacar que a atuação das associações conta com a chancela do Judiciário brasileiro. Representantes de tribunais e de ministérios públicos manifestam um claro entendimento das atribuições dessas instituições formadas por transportadores de cargas com o objetivo de criar um fundo próprio de recursos destinados à prevenção e à reparação de danos ocasionados aos seus veículos em decorrência de furto, acidente, incêndio e outros fatores. E mais: existe um claro entendimento do papel diferenciado das associações em relação às seguradoras.

O desembargador federal Kassio Marques, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em Brasília, já relatou que, “apesar da semelhança com o seguro mercantil comercializado pelas operadoras usuais do mercado, o seguro mútuo não se confunde”. “Essa modalidade é caracterizada pelo rateio de despesas entre os associados, apuradas no mês anterior, e proporcional às quotas existentes, com o limite máximo de valor a ser indenizado. É hipótese de contrato pluralista, orientado pela autogestão, em que todos os associados assumem o risco, sendo feita, entre eles, a divisão dos prejuízos efetivamente caracterizados”, disse o desembargador.

Marques foi o relator de uma apelação cível em que a 6ª Turma do TRF1 reconheceu que a atividade das associações se difere das realizadas por uma seguradora, além de não guardarem a mesma natureza jurídica.

A subprocuradora-geral da República, Denise Vinci Tulio, também emitiu um parecer em que consta que as associações não se caracterizam pela venda de seguros e, sim, pela relação de cooperação mútua. Assim, não prospera o argumento de prática ilegal de venda de apólice defendido pela Superintendência de Seguros Privados (Susep).

E no mundo?

O Brasil está distante da realidade mundial quanto à regulação de caminhoneiros e transportadores de grupos restritos. Representantes da Fenacat já tiveram a oportunidade de conhecer experiências internacionais. No mundo inteiro, as associações mutuais, as cooperativas e as empresas de seguro convivem harmonicamente, reguladas pelo mesmo órgão, exatamente como a federação tenta articular em território brasileiro.

“A postura do setor securitário de buscar fechar todas as associações está em total descompasso com o cenário mundial. A desregulação é benéfica para permitir que a Susep aplique penalidades. Entidades sérias como a Fenacat, o SindMútuo-MG e a Fenaben querem garantir a tranquilidade dos associados por meio de uma regulamentação que respeite as premissas da boa-fé e do associativismo”, ressalta Havengar.

Caminhos

O presidente da Associação de Fomento e Cooperativismo ao Transporte de Cargas do Brasil (Afocoop), Rogério Batista do Carmo, enfatiza que as instituições de proteção veicular devem sempre buscar a gestão profissionalizada, estimulando a melhoria da atuação dos transportadores. “Essas entidades incentivam uma mudança de cultura do transportador à medida que investem em conhecimentos diversos como legislação, questões administrativas e contábeis, entre outras”, analisa Carmo, que atua há mais de 17 anos no setor e foi vice-presidente da Apacoop junto a Assis no início desse modelo inovador de proteção patrimonial.

Ele lembra que, no começo das atividades, a relação de confiança permitiu a ajuda mútua de uma maneira informal, mas, com o aumento da importância do segmento, foram necessários alguns processos para garantir a igualdade e a qualidade dos serviços. “Inovamos muito no decorrer dos anos: implementamos rastreador, aumentamos a rede de assistência e firmamos muitas parcerias sempre com o objetivo de garantir a segurança do transportador. Esse deve ser o caminho”, garante o presidente da Afocoop.

Ele diz ainda que as associações precisam trabalhar para ter o seu diferencial e prestar uma assistência com qualidade e eficiência, pautadas pelas regras legais. Para ele, existe um potencial para essas entidades crescerem ainda mais. “Nossa estimativa é que elas alcançam somente 2% do transporte rodoviário do país”, informa Carmo.

Havengar completa que é inegável o papel fundamental dessas instituições, especialmente no atual momento. “Muitas associações têm uma atuação inabalável, são sérias e guiadas pelos princípios de proteger, acolher e lutar pelas melhores condições possíveis para cada um de seus associados, seja protegendo um bem, seja cuidando da saúde, da educação ou pensando na cultura”, salienta.

Como representante da Prevenir Proteção Veicular e da Prevenir Truck, que é uma das pioneiras na prática dessas diretrizes, o especialista recomenda cuidados no momento de se associar. “Pesquise o histórico dos dirigentes e toda a atuação da entidade. Lembre-se: uma associação é livre para atuar em prol dos seus associados. O Estado não tem poder sobre ela, contanto que sejam praticados atos lícitos. Essa autonomia está prevista em nossa Constituição Federal, de 1988. No entanto, se as pessoas que estiverem à frente dessas entidades não conhecerem de fato a causa ou forem desonestas, o patrimônio do associado correrá o risco de ficar à mercê de uma verdadeira quadrilha”, conclui Assis.

 

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