Mais de 4.000 instituições que beneficiam - direta e indiretamente - cerca de 3 milhões de transportadores e profissionais por meio da assistência e da geração de emprego e renda no Brasil. Os dados do setor de seguros revelam o impacto das associações de proteção a caminhões, também chamadas de organizações de socorro mútuo e ajuda solidária, no transporte rodoviário de cargas e no desenvolvimento socioeconômico do país. Essas associações garantem serviços e segurança para transportadores atuarem, sobretudo os caminhoneiros, que enfrentam recusa ou preços exorbitantes das seguradoras para cobrir veículos com mais de 15 anos de uso pelo alto risco de assaltos e acidentes nas estradas.
Apesar de sua importância, uma jornada acontece para garantir segurança jurídico-institucional para essas organizações e pra legitimá-las junto aos órgãos reguladores do setor, especialmente com a Superintendência de Seguros Privados (Susep). No dia 8 de maio, a autarquia realizou mais uma audiência pública para discutir minutas de normas que tratam de Seguro de Responsabilidade Civil dos Transportadores de Carga; Seguros de Responsabilidade Civil de Veículo (RC-V), para cobertura de danos corporais e materiais causados a terceiros pelo veículo automotor utilizado no transporte rodoviário de carga; e Seguro de Transportes.
Uma regulamentação feita com viés puramente econômico, vai eliminar o sonho do caminhoneiro autônomo de poder garantir seu patrimônio por meio das associações. Precisa-se pensar no social.
Durante a audiência pública, houve manifestação de 25 instituições e profissionais autônomos, que puderam apresentar suas considerações sobre o tema. Na audiência, a diretora da Susep, Jessica Bastos, disse, ressaltando a importância do diálogo entre as diversas partes envolvidas, que a iniciativa amplia o debate e a participação da sociedade civil. “Pudemos observar a importância do diálogo não só pelo número de inscritos, mas sobretudo pela pluralidade deles. Contamos com transportadores, embarcadores, seguradoras, advogados autônomos e corretores”, destacou Jessica.
A equipe de reportagem de Entrevias solicitou, diversas vezes, retorno da Susep quanto à regulamentação das associações e sobre os próximos passos da autarquia, mas - até o fechamento desta edição - não havia recebido o retorno. Quanto à audiência pública, a Susep informou que “as considerações serão analisadas e posteriormente publicadas em conjunto com as das consultas públicas que trataram do tema”.
Respeito às especificidades
O cerne está na diferenciação das atribuições das associações de auxílio solidário de caminhoneiros e seguradoras: as primeiras são instituições com viés classista, grupos restritos e formadas exclusivamente por transportadores de cargas com o objetivo de criar fundo próprio de recursos destinados à prevenção e à reparação de danos ocasionados aos seus veículos por furto, acidente, incêndio, entre outros motivos, pra garantir a continuidade em suas atividades de trabalho, ou seja, um papel completamente diferenciado em relação às seguradoras.
Nesse contexto, não se deve confundir os seguros propriamente ditos com os serviços de proteção a caminhões baseados na autogestão e no auxílio solidário. Estes últimos exigem mutualidade e estabelecem rateio entre participantes ou estipulam fundo de reserva a partir de contribuições periódicas, sem abranger o mercado em geral, mas apenas um grupo de associados. Já a atividade de seguros abarca o mercado em geral, e não pessoas determinadas.
“Esse sistema, desde 1980, vem apoiando os caminhoneiros. Ele é essencial para sua sobrevivência, já que o transportador de cargas não consegue fazer seguro. Por isso, a proteção veicular foi uma solução para esse problema. Em 2003, fui o pioneiro na transformação desse sistema, criando um regimento e regras específicas para atender os caminhoneiros. Contudo, infelizmente, de lá para cá, essa perseguição cruel de alguns órgãos governamentais, principalmente a Susep, vem atrapalhando o que para a gente foi a solução de um problema que o mercado segurador não quis solucionar”, critica o vice-presidente da Fenacat, Geraldo Eugênio de Assis, que também é presidente do Sindmútuo.
O Judiciário já reconheceu as especificidades das associações. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Marques, que, na época, era desembargador federal do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, relatou que, “apesar da semelhança com o seguro mercantil comercializado pelas operadoras usuais do mercado, o seguro mútuo não se confunde”. “Essa modalidade é caracterizada pelo rateio de despesas entre os associados, apuradas no mês anterior, e proporcional às quotas existentes, com limite máximo de valor a ser indenizado. É hipótese de contrato pluralista, orientado pela autogestão, em que todos os associados assumem o risco, sendo feita, entre eles, a divisão dos prejuízos efetivamente caracterizados”. Ele foi relator de apelação cível em que a 6ª Turma do TRF da 1ª Região - Brasília - reconhece que a atividade de associações se difere das realizadas por uma seguradora, além de não guardarem a mesma natureza jurídica.
A subprocuradora geral da República Denise Vinci Tulio também emitiu parecer de que as associações não se caracterizam pela venda de seguros e, sim, pela relação de cooperação mútua.
Protagonismo na defesa
Essas interpretações, sem dúvida, têm inspiração no trabalho da Federação Nacional das Associações de Caminhoneiros e Transportadores (Fenacat). “Desde 2007, a Fenacat tem o propósito legítimo de fortalecer o transporte rodoviário de cargas, por meio da articulação, da preparação de fundamentos jurídicos e da participação em iniciativas com foco na proteção do veículo de carga Ð patrimônio de seus associados. Para tanto, representa essa categoria e conta com uma rede de parceiros, como sindicatos de transportadores autônomos”, enfatiza o presidente da Fenacat, Luiz Carlos Neves.
A assessora jurídica da federação, Virginia Laira, relembra que, em 2010, viu-se a necessidade de traçar um caminho jurídico: fundamentos para apoiar a defesa das associações de proteção de caminhões. “Assim, começamos a realizar audiências públicas, inicialmente em São Paulo, e partimos para o processo legislativo. Entendemos na época que era a única forma de dialogar com a Susep era por meio da regulamentação das associações”, relembra.
Em outubro de 2012, começou intensamente a articulação com o Legislativo em Brasília. Nesse período, a diretoria da federação trabalhou junto a parlamentares com o objetivo de sensibilizá-los quanto à importância de associações para garantir a sustentabilidade do setor.
A Fenacat lançou como estratégia a articulação dos dois projetos com o mesmo objetivo - um no Senado e outro na Câmara dos Deputados - para que ambos caminhassem nas duas Casas, de modo que aquele que chegasse primeiro à outra encurtasse o caminho a ser percorrido por eles.
No Senado, o PL 356/2012, do senador Paulo Paim (PT/RS), permite a criação de associações de transportadores de pessoas ou cargas para criar fundo próprio, desde que seus recursos sejam destinados exclusivamente à prevenção e à reparação de danos ocasionados aos seus veículos por furto, acidente, incêndio etc.
No âmbito da Câmara dos Deputados, o deputado federal Diego Andrade (PSD/MG) criou o Projeto de Lei 4.844/2012, que também tem como proposta alterar o artigo 53 do Código Civil Brasileiro para permitir aos transportadores de pessoas ou cargas organizarem-se em associações de direitos e obrigações recíprocas para criar fundo próprio exclusivamente destinado à prevenção e à reparação de danos ocasionados aos seus veículos por furto, acidente, incêndio, dentre outros.
Esses projetos, durante o andamento nas Casas Legislativas, tiveram a participação da Fenacat nas comissões e se desdobraram em marcos importantes. Em 2015, foi criado um grupo de trabalho da Susep na Câmara dos Deputados para discutir a regulamentação com caminhões, com representantes da Fenacat, da Organização das Cooperativas do Brasil (OCB), do Ministério da Fazenda e da Confederação Nacional de Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNseg).
Nesse relatório final, foi destacada a atribuição das associações de proteção a caminhões. “Foi conclusivo que essas instituições não podem ser caracterizadas como seguro. Seu papel é diferenciado e tem o propósito mútuo entre os transportadores. O documento final também apontou a importância de continuar as reuniões do grupo de trabalho para criar uma regra geral pra associações e cooperativas”, recorda-se o vice-presidente da Fenacat, Geraldo Eugênio de Assis.
Contudo, devido às mudanças na gestão da Susep, o grupo de trabalho foi descontinuado.
Andamento
Quanto aos projetos de lei, os diretores da Fenacat contam que acompanham as movimentações no Congresso Nacional. “Reapresentei o Projeto de Lei 1.070/2023 porque o PL 356/2012, com o mesmo teor, foi arquivado em 2022, ao fim da legislatura. O projeto de lei permite a criação de associações de transportadores de pessoas ou cargas para criar fundo próprio, desde que seus recursos sejam destinados exclusivamente à prevenção e à reparação de danos ocasionados aos seus veículos por furto, acidente, incêndio etc. Também prevê o cancelamento de autos de infração emitidos, até a data de publicação desta lei, pela Susep contra as associações de caminhoneiros e cooperativas de transportadores de pessoas ou cargas”, explica o senador.
Ele contextualiza que a Susep tem movido ações para impedir a atuação de associações nesse setor, e o “projeto surgiu da necessidade de transportadores autônomos cobrirem os prejuízos a um custo menor, uma vez que os preços dos seguros são muito elevados, bem acima da capacidade que os caminhoneiros têm condições de arcar”.
Recentemente, esse projeto foi aprovado pela Comissão de Serviços de Infraestrutura e encaminhado à Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal.
Outra matéria do setor do transporte rodoviário de carga que vem sendo vista com ar de desconfiança é o Projeto de Lei Complementar (PLP) 101/2023, de relatoria do deputado federal Vinicius Carvalho (Republicanos/SP), que dispõe sobre o Sistema Nacional de Seguros Privados e regula as operações de seguros e resseguros, porque ainda não há acesso a todas as informações e o modo como a Susep e o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) irão tratar o setor.
Recentemente, a diretoria da Fenacat se reuniu com o relator. “Tivemos uma impressão muito positiva do deputado federal Vinicius, que entendeu a dinâmica das associações ligadas à Fenacat. Temos um diferencial: todas as associadas à federação são formadas e geridas por caminhoneiros. Essa é uma condição da qual não abrimos mão. Por isso, lutamos pela regulamentação e pela segurança jurídica-institucional de nossas associações. Para tanto, esclarecemos que a operação de proteção patrimonial mutualista é destinada exclusivamente ao transporte rodoviário de carga e que deve ter sua autonomia na gestão preservada. Nesse contexto, as atividades das associações de ajuda solidária remetem ao conjunto de atividades econômicas organizadas sob a forma de autogestão, de forma que a administração da associação seja feita pelos seus membros de maneira democrática, em que sugerimos a criação de um fundo de reserva para garantir a continuidade das operações”, explica Geraldo.
Adotar um modelo de economia solidária, portanto, implica valorizar ações de colaboração, solidariedade e coletividade, permitindo que as relações entre pessoas, nesse caso as associações, possam ser mais justas do ponto de vista social e sustentáveis pelo lado econômico, eliminando os altos custos impostos pelo mercado segurador.
A equipe de Entrevias contatou a assessoria de imprensa do deputado federal Vinicius para apurar a data de apresentação do relatório, mas tivemos o retorno do seu assessor que ele não comenta matérias que estão andamento. Contudo, o deputado federal Toninho Wandscheer (PP-PR) garantiu que as associações seriam contempladas, inclusive com anistia das multas e suspensão dos processos judiciais.
“Como defensor do setor de transporte de cargas, reconheço a importância do PLP 101 de 2023 para a estruturação e o fortalecimento do nosso setor. É fundamental manter a separação clara entre os diferentes segmentos, principalmente o transporte rodoviário de carga, assegurando que esse seja contemplado, mas respeitando as estruturas e os moldes das associações de auxilio solidário já existentes. Esse projeto não só deve proteger como também deve promover o desenvolvimento sustentável e estratégico de um setor vital para a economia nacional. Estou confiante de que esse projeto conseguirá oferecer a segurança e a organização necessárias para que possamos continuar a crescer e a prosperar de maneira eficaz e eficiente”, declarou o deputado federal Toninho Wandscheer.
No que tange ao PL 4844/2012, a matéria - que tem como relator o deputado Covatti Filho (PP/RS) - será novamente colocada em pauta na CCJ. “Com todo o desastre ocorrido no Sul do país, o deputado Covatti está envolvido com os problemas que envolvem seu Estado e, por essa razão, vai aguardar o momento mais oportuno”, atualiza o presidente da Fenacat. Depois que for aprovado nessa comissão, Luiz explica, o PL será enviado para o Senado Federal, sendo apensado ao Projeto de Lei 1070/2023, do senador Paulo Paim.
Nesses anos de atuação, foram realizadas centenas de reuniões com parlamentares para apresentar a importância das associações de proteção a caminhões e para a busca da devida regulamentação. “A Fenacat é precursora em legitimar a atuação dessas instituições de auxílio solidário. Para isso, busca constante apoio junto ao Congresso Nacional e entidades do setor, além de dialogar com a Susep e outros órgãos reguladores nacionais para garantir segurança jurídica-institucional das associações e alcance do impacto do seu trabalho, mas sempre sem perder a essência do que foi construído e que sempre deu certo! Que fique claro que o setor do TRC vai buscar a melhor solução para o setor. Seguiremos sempre esse propósito”, concluiu o vice-presidente, Geraldo Eugênio de Assis.