Pontos de descaso e desrespeito
Locais destinados ao descanso de caminhoneiros se tornam ambientes de medo e violência e revelam déficit crítico dessa política para o setor de transporte
São quase 35 anos de trabalho jogados ao chão, pisoteados, violentados. O caminhoneiro Evander Maurílio Godinho, de 62 anos, jamais imaginou viver uma situação de tamanhos desrespeito, brutalidade, covardia e humilhação. No dia 1º de outubro, realizando o
São quase 35 anos de trabalho jogados ao chão, pisoteados, violentados. O caminhoneiro Evander Maurílio Godinho, de 62 anos, jamais imaginou viver uma situação de tamanhos desrespeito, brutalidade, covardia e humilhação. No dia 1º de outubro, realizando o transporte entre Piracicaba (SP) e Cachoeiro do Itapemirim (ES), parou no Posto JR, localizado na altura do KM 442 da BR-101, em Mimoso do Sul, próximo à divisa com Campos dos Goytacazes. Cliente desse estabelecimento, preparou-se para uma noite de descanso, mas o destino final foi em um hospital, muito machucado, com dores no corpo e na alma.
“Como faço em todas as viagens, planejo minha rota e programo meu tempo de descanso. Naquele dia, por volta das 21h30, estacionei no Posto JR para pernoitar. Parei o caminhão, próximo a outros, e fui ao banheiro para me preparar pra dormir. Quando voltei, deitei no caminhão, e, logo depois, um vigia desse estabelecimento chegou solicitando a retirada do veículo. Expliquei que o caminhão estava bloqueado, pois a transportadora que represento tem uma diretriz de parar a atividade entre 22h e 5h, respeitando a lei do descanso, e que não conseguiria sair”, conta Evander.
Ele continua: “Toda a frota é acompanhada em tempo real, e expliquei que, no dia seguinte, iria abastecer e que não achava justo pagar R$ 150, tendo em vista que a transportadora já utilizava os serviços desse posto e que eu também iria utilizar. Um grupo de pessoas também chegou e começou a me agredir por meio de palavras e, em seguida, subiu no caminhão e começou a me bater. Um deles é o gerente do posto. Fui puxado da cabine e caí direto no chão. Senti uma dormência, meu corpo paralisado e comecei a rezar pela minha família, pela minha esposa, pelos meus filhos e pelo meu neto”, emociona-se o motorista.
Muito machucado, um motorista que estava no posto chamou o serviço de emergência e o levaram ao hospital. Evander passou por três instituições de saúde, devido à gravidade do seu caso, e, somente na manhã do dia seguinte, foi liberado. Chegando ao posto para verificar a situação do caminhão, observou diversas avarias, como porta e vidros quebrados, partes empenadas e, quando entrou no restaurante do próprio posto para tomar café, o responsável pelo estabelecimento queria agredi-lo, novamente, dizendo que ele se fazia de vítima.
Evander teve traumatismo craniano e a clavícula direita fraturada. Ele conta que, recentemente, sua esposa encontrou pedaços de pedrinha dentro da sua cabeça e que passará por cirurgia nos braços. Também permanecem a tontura e o trauma emocional. “Muito triste essa situação. Nunca imaginei passar por isso. Sofri assalto na estrada, fui refém, mas não me machucaram. A profissão do transportador está muito sofrida há anos, e o motorista merece respeito, dignidade, segurança e garantia de direitos fundamentais para todos os trabalhadores. Na verdade, todos dependem um do outro: somos uma corrente!”, detalha.
O Posto JR respondeu à equipe de reportagem de Entrevias com a seguinte nota: “Temos mais de 30 anos de atividades, atendendo diariamente centenas de clientes, em sua maioria caminhoneiros. O fato ocorrido é lamentável, mas não representa nossa história, nem nossos valores. Estamos à disposição das autoridades desde o primeiro momento, prestando esclarecimentos e disponibilizando as imagens do nosso circuito de TV para que os fatos sejam apurados e os responsáveis devidamente identificados. Internamente, desligamos o funcionário diretamente envolvido e afastamos temporariamente os demais colaboradores das suas atividades. Por fim, queremos registrar nosso compromisso com a verdade dos fatos e repudiar toda e qualquer tentativa de denegrir a imagem do nosso estabelecimento de forma irresponsável e covarde”.
A Fontanella Transportes, empresa onde o caminhoneiro trabalha, se manifestou, por meio de um vídeo publicado nas redes sociais, e garantiu que estava credenciada a parar no posto de combustível onde ocorreu a confusão. “Nós éramos clientes e credenciados. Ele estava parado e não teve como levar o caminhão até a bomba, mas faria o abastecimento na manhã seguinte. O posto não tolerou e disse que teria que abastecer naquele momento e aconteceu tudo aquilo que vocês já viram”, explicou o diretor da transportadora, Ramiris Fontanella, nas redes sociais da empresa. Ele também ressaltou que está prestando solidariedade ao caminhoneiro agredido e garantiu que todas as medidas cabíveis serão tomadas.
“Há mais de dez anos temos demonstrado a necessidade urgente de criação e manutenção de pontos de parada. Nesse mesmo período, o cerco se apertou para que os motoristas cumpram a lei das 11 horas de descanso. Mas como cumprir uma lei se o próprio poder público não age? É injusto exigir o cumprimento de regras sem oferecer condições mínimas de descanso e segurança. Mais injusto ainda é ver um caminhoneiro agredido, quando, na verdade, é ele quem sustenta o país nas estradas”, critica Geraldo Eugênio de Assis, presidente da Sindmútuo/MG, da Prevenir Truck e vice-presidente da Federação Nacional das Associações de Caminhoneiros e Transportadores (Fenacat).
Retrato do desrespeito
A violência que acometeu Evander não é um fato isolado. Caminhoneiros relatam a dificuldade de encontrar locais seguros e cumprir as condições estabelecidas pela Lei 13.103/2015 Ð chamada popularmente da Lei dos Motoristas ou do Descanso.
Essa legislação prevê regras para jornada, pausas e descanso obrigatórios pra segurança e saúde do motorista. Entre as principais diretrizes estão: o descanso diário ininterrupto, que foi o caso do Evander, orientando que o motorista deve cumprir 11 horas de descanso seguidas a cada 24 horas de trabalho; dirigir sem pausas no tempo máximo de cinco horas e 30 minutos, e esse intervalo pode ser dividido em pausas menores; a cada semana de trabalho, é garantido um descanso de ao menos 24 horas consecutivas e, em viagens acima de sete dias, ele é ampliado para 36 horas; e uma jornada diária é de até oito horas, podendo ser intercalada em até duas horas extras (ou até quatro por acordo coletivo).
Mas como descansar, para garantir a saúde e a segurança, frente a um cenário de vulnerabilidade de pontos e de déficit crítico de infraestrutura em um país de dimensões continentais ancorado no transporte rodoviário de cargas? O Brasil possui aproximadamenteÊ1,7 milhão de quilômetros de estradas, segundo a Pesquisa CNT de Rodovias 2024,Êe 4,4 milhões de motoristas profissionais/caminhoneiros de acordo com levantamento do Instituto de Logística e Supply Chain (ILOS), que tem como base os dados da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran).
Para atender esse público, atualmente, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) informou que “existem 60 estabelecimentos certificados como Ponto de Parada e Descanso (PPD) nas rodovias federais concedidas, que estão sob o escopo desta instituição. Os outros 118 estão sob escopo do Departamento Nacional de Trânsito (Dnit). Isso significa que 178 PPDs estão certificados.
A Portaria Nº 387/2024, que estabelece a Política Nacional de implantação de Pontos de Parada e Descanso (PPD) em rodovias federais, prevê a existência de ao menos um PPD a cada 400 km, meta longe de ser cumprida na maioria das rodovias brasileiras. “Sem dúvidas, é insuficiente para atender às necessidades da categoria. O que observamos é que a ANTT está afrouxando as regras, com pontos em qualidade ruim e cuja verdadeira necessidade do transportador não vão alcançar. Observamos que temos muitas exigências, mas pouca entrega de políticas públicas”, critica Wagner Jones Almeida, presidente da Federação dos Transportadores Autônomos de Cargas do Estado de Minas Gerais (Fetramig-MG) e que também atua na Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA).
Para ser certificado, o PPD precisa atender uma série de requisitos e condições mínimas sanitárias, de segurança e conforto, previstos na Portaria nº 672/2021 do Ministério do Trabalho e Previdência, como área para pernoite adequada com espaço suficiente, salas de repouso equipadas com mesas e cadeiras confortáveis, ambiente climatizado e bem iluminado para descanso, instalações sanitárias com chuveiros em condições de higiene adequadas, lavatórios com torneiras em bom estado, gabinetes sanitários em perfeito funcionamento, restaurante ou refeitório com opções de alimentação, micro-ondas para aquecimento de alimentos dos motoristas, bebedouro com água, espaço adequado para refeições, monitoramento por câmeras de segurançaÊ24 horas, vigilância, estacionamento cercado ou seguro, wi-fi gratuito para acesso à internet, serviços mecânicos disponíveis ou próximos, pátio de manobras com espaço adequado para circulação e sinalização adequada.
Evander conta que essas condições somente valem no papel. “Ainda há muitos pontos que não contemplam as exigências e que cobram para qualquer atividade: é necessário pagar para usar banheiro, estacionar, mesmo que a gente abasteça o caminhão ou consuma no estabelecimento”, diz. Wagner corrobora: “Alguns pontos de parada e descanso exigem R$ 400 Ð isso é absurdo!”
Pesquisa realizada pelo CNTA e pela Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) mostrou que o monitoramento por câmeras e vigilantes nos pontos de parada e descanso foi considerado muito importante por 66% dos caminhoneiros. Nessa classificação, também despontaram os itens iluminação (65%), estacionamentos cercados (64%), manutenção do pavimento (63%) e cadastro dos usuários (61%). Esse levantamento contou com a participação de mais de 1.400 caminhoneiros, e o foco foi conhecer as necessidades sobre os Pontos de Parada e Descanso (PPDs) ao longo das rodovias federais.
O presidente do Sindicato dos Cegonheiros de Minas Gerais (Sintrauto/MG), Carlos Roesel, reflete: “Ressalto a urgência e a importância vital de fortalecer, ampliar e melhorar as condições infraestruturais dos pontos de parada e descanso ao longo das rodovias brasileiras, com abordagem especial nas demandas específicas de nossa categoria profissional. Os cegonheiros são profissionais que conduzem veículos de grande porte, além de transportar bens com alto valor agregado e, portanto, têm responsabilidade ampliada. Isso significa que precisam contar com locais seguros e adequados para descansar e garantir sua saúde em todos os sentidos”.
Governança dos pontos
O processo de certificação envolve atuação coordenada entre os órgãos. O Ministério dos Transportes realiza análise prévia da documentação dos interessados em se credenciar como PPD; a ANTT, no caso das rodovias concedidas, ou o Dnit - nas não-concedidas Ð realiza a vistoria in loco, que encaminha ao ministério, o qual emite a portaria de certificação ao fim de cada mês.
Quanto às responsabilidades, o Ministério dos Transportes é o órgão central responsável pela política pública dos PPDs no Brasil e, por isso, deve realizar vistoriasÊ(sem aviso prévio) para verificar a manutenção das condições. Já a ANTT tem competência específica sobre rodovias federais e fiscaliza as concessionárias quanto ao cumprimento das obrigações contratuais de implantação de pontos. O Dnit atua na análise e na implantação de PPDs ao longo das rodovias sob sua gestão.
Por meio de nota, o Ministério dos Transportes respondeu explicando que o Executivo federal busca aumentar o número de PPDs públicos, provenientes das concessões rodoviárias. “A pasta designou que, por meio da ANTT, seja feita a renegociação dos contratos antigos para que seja incluída a obrigatoriedade de implantação dos pontos de descanso nos respectivos trechos concedidos. Essa obrigatoriedade já consta nos editais mais recentes, assim como estará nos próximos, de forma que todas as proponentes já tomam conhecimento previamente ao leilão”, diz texto.
Disse ainda que, considerando os PPDs com contratos vigentes, os contratos de concessão leiloados em 2023, 2024 e 2025, e os leilões a serem realizados em 2026 e pós-2026, decorrentes dos estudos contratados, o objetivo é atingir, ao fim desse processo, aproximadamente cem PPDs em operação em rodovias federais concedidas.
“O monitoramento dos atuais PPDs públicos é realizado pela ANTT. Já no caso dos PPDs particulares, localizados em rodovias não concedidas, a vistoria pelo Dnit pode ocorrer após a certificação, a qualquer momento e sem aviso prévio”, segundo o Ministério dos Transportes. Procurados, nem o Dnit nem a agência sobre a vistoria, até o fechamento desta edição não há retorno.
Na prática
A expansão da infraestrutura e a melhoria das condições existentes são urgentes e fundamentais não apenas para o cumprimento da legislação, mas principalmente para garantir segurança, dignidade e qualidade de vida aos profissionais que movimentam a economia brasileira. Segundo o Ministério dos Transportes, há previsão de investimentos contínuos por meio das concessões rodoviárias, mas a implementação efetiva e a fiscalização rigorosa da qualidade dos serviços oferecidos serão determinantes para uma melhoria real do cenário.
Neste ínterim, tramitam no Congresso Nacional propostas para amenizar o problema. A Proposta de Emenda à Constituição 22/2025, atualmente em análise pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, prevê a retirada de multa para caminhoneiros que descumprirem os períodos de descanso enquanto não houver estrutura de pontos de parada nas rodovias brasileiras. Para o autor, senador Jaime Bagattoli (PL-RO), a Lei do Motorista (Lei 13.103/2015) não leva em conta a realidade das estradas. O senador Esperidião Amin (PP-SC) apresentou voto favorável à PEC. Já o senador Rogério Carvalho (PT-SE) questionou a flexibilização e pediu adiamento da votação.
A PEC 51/2024, de autoria do deputado federal Toninho Wandscheer (PP/PR) e outros parlamentares, altera o artigo 7º e o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 para tratar das condições especiais de trabalho do motorista profissional empregado no transporte rodoviário de cargas e de passageiros. Segundo essa proposta, “a lei estabelecerá condições especiais de trabalho do motorista profissional relativas a: I Ð jornada de trabalho e tempo à disposição do empregador; II Ð tempo de espera nas atividades de carga e descarga; III Ð condições de fruição e de fracionamento dos intervalos de descanso, alimentação e repouso intrajornada e interjornada; IV - local de fruição e condições de acumulação e de fracionamento do repouso semanal remunerado; V - remuneração de tempo de espera e de pequenas movimentações do veículo”. Essa proposta também está em votação na CCJ, mas da Câmara dos Deputados, e, no dia 12 de novembro, foi aprovado o parecer do relator dessa matéria, o deputado federal Zé Trovão (PL/SC).
Durante a audiência, o deputado federal Toninho Wandscheer contextualizou que essa PEC nasce com o objetivo de corrigir os efeitos do Supremo Tribunal Federal, que declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei 13.103/2015. “Embora legítima no campo jurídico, essa decisão acabou gerando um vácuo normativo que trouxe insegurança jurídica, prejuízos econômicos e riscos à segurança viária em todo o setor de transporte rodoviário. O objeto da PEC 51-2024 é restabelecer o equilíbrio entre a proteção social do trabalhador e a realidade operacional da atividade de transporte, preservando o que a lei trouxe de avanços, fruto de amplo diálogo entre o Congresso Nacional, o governo federal e o setor produtivo e os próprios motoristas. O relatório apresentado pelo deputado Zé Trovão reflete com precisão esse entendimento e demonstra que a proposta não afronta qualquer cláusula pétrea da Constituição Federal, tampouco reduz direitos fundamentais dos trabalhadores. Pelo contrário, reforça o papel do Parlamento como espaço legítimo de deliberação e atualização do ordenamento jurídico diante dos novos desafios sociais e econômicos”, disse.
Para os leitores da revista Entrevias, o deputado Toninho se manifestou: “a aprovação do relatório da PEC 51, de 2024, na Comissão de Constituição e Justiça é uma vitória muito importante para o Brasil e para todos os motoristas profissionais. Essa proposta nasce do diálogo com o setor e busca modernizar, com segurança jurídica, as condições de trabalho de quem move a economia brasileira nas estradas. A admissibilidade confirma que estamos no caminho certo. Agora entramos na fase mais decisiva, que é a votação em dois turnos no Plenário da Câmara. Vou trabalhar pessoalmente para construir consenso entre as bancadas e garantir que o texto avance com rapidez. O Brasil precisa reconhecer o valor desses profissionais e assegurar regras claras, equilibradas e compatíveis com a realidade do transporte rodoviário. Seguiremos firmes para que a PEC 51 se torne uma conquista concreta, fortalecendo a proteção ao motorista, a segurança nas rodovias e a qualidade do serviço logístico do país”.
O deputado federal Zé Trovão também deixa sua mensagem: “Tenho recebido diariamente, em meu gabinete, relatos de caminhoneiros de todo o Brasil, que enfrentam enormes dificuldades para cumprir a exigência de 11 horas ininterruptas de descanso. Essa regra, imposta após decisão do Supremo, desconsidera a realidade das estradas e da logística no transporte de cargas. A PEC 51 busca corrigir essa distorção, restabelecendo condições de trabalho que respeitam o direito ao repouso sem inviabilizar a profissão. A Lei 13.103/2015 havia pacificado o setor e contribuído, inclusive, para a redução de acidentes nas rodovias. Hoje, o que vemos é o contrário: paradas forçadas em locais inseguros, prejuízos nos prazos e risco de vida. Nosso parecer é um passo firme em defesa dos motoristas, da segurança e da racionalidade no transporte brasileiro”.
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