Um chamado para a ação
I Seminário Internacional do Ciclo de Gestão de Desastres reuniu especialistas pra discutir e apontar caminhos para prevenção, preparação, mitigação, resposta e recuperação em situações de eventos extremos
Nas últimas quatro décadas, 92% dos municípios brasileiros sofreram algum dano extremo causado pelo clima, e o número de desastres climáticos que atingiram o Brasil nos últimos quatro anos foi 250% maior do que o registrado em toda a década de 1990.
Nas últimas quatro décadas, 92% dos municípios brasileiros sofreram algum dano extremo causado pelo clima, e o número de desastres climáticos que atingiram o Brasil nos últimos quatro anos foi 250% maior do que o registrado em toda a década de 1990. Ao todo, o país sofreu mais de 16 mil eventos climáticos que resultaram em catástrofes entre 2020 e 2023, mais que o dobro das 6.523 ocorrências entre 1991 e 2000.
Os dados são do relatório publicado pela Aliança Brasileira pela Cultura Oceânica. A pesquisa ainda projeta um horizonte extremamente preocupante para o país, que deve ser atingido por ao menos 128 mil desastres climáticos até 2025.
O “Sexto Relatório de Análise” do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC) aponta queÊmesmo o limite de 1,5¡C de aquecimento não é um cenário seguro para a sociedade, pois 950 milhões de pessoas em todo o mundo vão enfrentar desertificação e estresses hídricos e térmicos, e a parcela da população mundial exposta a inundações subirá para 24%.
Diante desse cenário, foi realizado o I Seminário Internacional do Ciclo de Gestão de Desastres - Desastre 360 - nos dias 30 e 31 de outubro, em Gramado, no Rio Grande do Sul. Coordenado pela ONG Humus, em parceria com a prefeitura da cidade e a Defesa Civil Municipal, o encontro mobilizou especialistas nacionais e internacionais para abordar, pela primeira vez, as etapas do ciclo de gestão de desastres: prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação.
“A Humus hoje é talvez a única organização sem fins lucrativos que tem um foco totalmente voltado para desastres. A gente sabe que existem outras instituições que atuam em várias áreas quando acontece uma emergência, mas somos formados e especializados nisso. Então, essa especialização fez com que a gente entendesse a necessidade de criar um evento para disseminar a todo o público nossas capacitações: o que fazer, como atuar antes, durante e depois do desastre. Isso para que toda a sociedade civil e o poder público entendam seu papel. Por isso, a realização desse seminário é tão importante, e a nossa ideia foi exatamente mostrar que todo mundo é capaz de ajudar a salvar vidas antes, durante e depois”, contextualiza Léo Farah,presidente e cofundador da Humus e especialista em gestão de crises, desastres e emergências.
O primeiro seminário contou com cerca de 300 participantes que representaram os bombeiros (civil, militar, voluntário), a Defesa Civil (municipal, estadual, federal), além de prefeitos, secretários, gestores públicos, profissionais dos setores de turismo, saúde, alimentação, logística, líderes comunitários, organizações não governamentais e estudantes.
O especialista conta que a escolha do local foi pelo fato de a região Sul ter sido acometida por eventos naturais extremos nos últimos anos: “Verificamos que a cidade de Gramado, especificamente, tem uma Defesa Civil muito atuante, bem-estruturada e bem-organizada, que conhece o ciclo completo do desastre, e precisávamos unir isso: não só a vontade de fazer em um local que tinha sido acometido por um evento como esse para pegar as lições aprendidas e, acima de tudo, ter uma organização como a Defesa Civil que sabe como atuar, pra que a gente mostre para os participantes a importância que é ter uma Defesa Civil atuante e como isso minimiza os eventos”.
Resultados
A integração e a cooperação técnica entre diferentes setores foram um dos principais resultados da primeira edição do seminário. “Foi um evento histórico, fruto da união de esforços e da busca por soluções que possam reduzir riscos, evitar perdas e salvar vidas. Compartilhamos experiências e metodologias que podem ser aplicadas em nível local, fortalecendo as ações de proteção e Defesa Civil de Gramado e de toda a região”, disse a coordenadora municipal da Defesa Civil de Gramado, Juliana Fisch, em sessão na Câmara de Vereadores no dia 3 de novembro.
Isso foi possível graças à troca de experiências nacionais e internacionais de especialistas do Brasil, do Japão (como se preparam para eventos catastróficos) e da Organização das Nações Unidas (ONU), permitindo a apresentação de práticas e metodologias variadas - desde prevenção até resposta e recuperação.
Fábio Racy, médico nas áreas de ortopedia e traumatologia e especialista em medicina de desastre, palestrou sobre estruturação de hospital e atendimento médico de emergência em desastres. Coordenador médico do Núcleo de Desastres e Missões Humanitárias do Einstein Hospital Israelita e da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein (SBIBAE), apresentou sua experiência e sua metodologia de planejamento, gestão e os resultados nas quase 20 missões nacionais e internacionais nos últimos 15 anos.
“A Medicina de Desastres é uma área voltada à saúde pública e à coletividade, não apenas ao indivíduo. Abrange o ciclo do desastre: mitigação, prevenção, preparação, resposta e recuperação, e, no Hospital Einstein, a preparação da equipe de resposta a desastres é feita por meio de missões humanitárias programadas. O objetivo é duplo: levar assistência de saúde (primária e secundária) a áreas remotas e de difícil acesso (como a região da Cabeça do Cachorro, na Amazônia) e, simultaneamente, treinar a logística e a resiliência da equipe. Isso expõe os profissionais a desafios reais de logística e infraestrutura precária, preparando-os para cenários de catástrofe”, explica o especialista.
Também coordenador médico do Comitê de Prevenção e Resposta a Catástrofe do Einstein Hospital Israelita e da SBIBAE, doutor Fábio Racy conta que a equipe dá suporte à atenção primária existente e leva especialistas (atenção secundária) e, quando possível, realiza cirurgias (atenção terciária). Também busca deixar legados, como a introdução de telemedicina e a agilização de diagnósticos, a exemplo da entrega imediata de resultados de Papanicolau para mulheres indígenas.
Outro legado, pontuado pelo médico, foi na enchente do Rio Grande do Sul. “Diante do colapso do sistema de saúde de Canoas (hospitais e UPAs inundados), a equipe identificou um prédio de atenção secundária (SAE) alagado, porém recuperável. Eles limparam o local, restabeleceram energia e água, e o transformaram em uma UPA adaptada. Operaram o espaço, atendendo mais de 2.000 pessoas e, ao partirem, deixaram a unidade em funcionamento como legado para a cidade, restaurando a capacidade de atendimento de urgência e emergência”, detalha.
Toda vida importa
“Tudo que vive quer viver. Então, cabe a nós salvar aqueles que querem ser salvos”. A frase é do médico veterinário Aldair Junio Woyames Pinto, especialista em resgate técnico animal e em medicina veterinária de desastres, que apresentou o trabalho do Grupo de Resgate Animal de Belo Horizonte (GRABH), do qual é presidente.
Ele trouxe a visão da medicina veterinária sobre o socorrismo, enfatizando que as premissas e os protocolos para assistência de animais são os mesmos dos seres humanos. “Qualquer pessoa com treinamento e capacitação pode ajudar a salvar animais. Entretanto, a integração das equipes de primeira resposta exige mais do que apenas isso. Formação em medicina veterinária, auxílio veterinário e socorro animal pode ser essencial para esses trabalhos”, afirma o profissional.
O grupo atuou em diversos cenários de desastres no Brasil e na América Latina. “No Rio Grande do Sul, o número de socorro de animais superou o de seres humanos. Toda vida importa, e, por isso, a tecnificação do socorro de animais precisa existir. Lembrem-se sempre deles: eles sofrem, sentem dor, sede, frio e medo. São seres que merecem socorro e salvamento como qualquer outro. E acredito que o evento sensibilizou quem deveria sensibilizar pra nossa missão”, avalia o especialista em resgate de animais.
Léo Farah enfatizou ainda outros assuntos durante o evento, como a apresentação do sistema de alerta de prevenção de desastres, como são importantes o tratamento do estresse pós-traumático e a logística humanitária. São exemplos do ciclo do desastre e de como implementar em cada região.
“Colhemos a percepção dos participantes, que recomendaram nova edição do evento. Por isso, a ideia é fazer o Desastre 360 no primeiro semestre de 2026, na cidade de Porto Alegre, e iniciamos as conversas para organizar a segunda edição do seminário”, prevê Léo Farah.
Multiplicidade de desastres
No Brasil, os eventos extremos fazem parte da Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (Cobrade), que é um sistema oficial que padroniza o registro e o monitoramento de ocorrências para fins de gestão de riscos e defesa civil. Essa classificação divide os desastres em naturais e tecnológicos, totalizando 65 tipos ou subtipos de eventos catalogados.
Para os naturais, são considerados cinco grupos: geológicos, hidrológicos, meteorológicos, climatológicos e biológicos. Já os tecnológicos são separados em ocorrências relacionadas a substâncias radioativas, produtos perigosos, incêndios urbanos, obras civis e transporte de passageiros e de cargas não perigosas.
Segundo os últimos dados consolidados do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), mantido pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), que foram compilados pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), no ano passado houve 716 eventos hidrológicos (transbordamento de rios) e 445 geológicos (deslizamentos de terra).
Cada tipo de desastre recebe um código Cobrade, permitindo a padronização nacional e internacional dos dados, e essa classificação é fundamental para garantir que todos os estados e municípios utilizem a mesma nomenclatura, facilitando, assim, a identificação de padrões e tendências de desastres por região e auxiliando na elaboração de planos municipais e estaduais de defesa civil. Possibilita ainda o monitoramento efetivo, por meio de alertas específicos por tipo de risco à população, e a resposta adequada para cada segmento de desastre.
Impactos na sociedade
Ao lado da multiplicidade e da diversidade das catástrofes, estão seus impactos para a sociedade. O sistema integrado apresenta dados alarmantes, consolidando o Brasil como país em franca escalada de eventos climáticos extremos.
Referente à mortalidade, 253 pessoas perderam a vida por decorrência das chuvas em 2024, sendo o quarto ano mais letal desde 1991: 183 mortes no Rio Grande do SulÊ(70% do total nacional), devido à maior enchente da história do estado, 23 óbitos no Rio de JaneiroÊe 21 no Espírito Santo, além de 26 em Minas Gerais apenas nas primeiras semanas de janeiro deste ano.
Sobre a população afetada, 991.802 pessoas ficaram desabrigadas ou desalojadas em 2024, e os prejuízos econômicos no país foram de R$ 9,2 bilhões nesse ano. No total da década 2020-2024, chega a R$ 132 bilhões, o que significa o dobro da década anterior, de acordo com as informações do S2ID.
Caminhos seguros
Evento como o I Seminário Internacional do Ciclo de Gestão de Desastres é fundamental para apontar caminhos seguros. Especialistas são unânimes na defesa da necessidade de se adotarem medidas estruturais, como obras de estabilização de encostas, canalização de córregos, desassoreamento e limpeza dos rios, além de aperfeiçoamento e manutenção dos sistemas de drenagem, e também de se investir em defesa civil.
Os especialistas também destacam a importância de haver soluções baseadas na natureza, ou seja, estratégias que utilizam os ecossistemas para enfrentar desafios ambientais. São medidas como preservação de manguezais (que protegem de ressacas do mar e alagamentos, além de absorverem gás carbônico); manutenção de matas ciliares (que ajudam a absorver água, evitam erosão e protegem os rios); e a existência de cidades- esponja (conceito que visa integrar a natureza no município, com o objetivo de se absorver água da chuva e de evitar enchentes).
O relatório “When Risks Become Reality - Extreme Weather in 2024” aponta quatro resoluções para lidar com o problema: uma transição mais rápida para longe dos combustíveis fósseis; melhorias nos alertas precoces; produção de relatórios em tempo real sobre mortes por calor; e financiamento para países em desenvolvimento.
Investimento salva vidas
e promove desenvolvimento
Recente relatório do Escritório da ONU para Redução do Risco de Desastres (Undrr) mostra que US$ 1 gasto na redução de riscos de desastres gera um retorno médio de US$ 15 em termos de custos futuros evitados.
No novo estudo, “Strengthening the Investment Case for Climate Adaptation” (em português, “Fortalecendo os argumentos para investir em adaptação climática”), foram analisados 320 projetos de adaptação e resiliência em setores como agricultura, água, saúde e infraestrutura. Esses projetos incluem desde a modernização de instalações de armazenamento de alimentos em Bangladesh até melhorias na gestão da água no Brasil.
Somados, os investimentos analisados superam US$ 133 bilhões e devem gerar cerca de US$ 1,4 trilhão em benefícios ao longo de uma década. Estima-se que cada investimento sozinho proporciona, em média, um retorno de 27%. A pesquisa agrupou os benefícios em três categorias principais: perdas evitadas, estímulo ao desenvolvimento econômico e benefícios sociais e ambientais adicionais. Os resultados mostram que esse tipo de investimento proporciona taxas de retorno mais altas do que se imagina, pois tem a capacidade de gerar empregos, ganhar produtividade, fazer com que as comunidades sejam mais saudáveis e garantir a melhoria ambiental.
Na prática
No Brasil, os investimentos em prevenção de desastres foram progressivamente reduzidos entre 2012 e 2023, chegando ao valor de R$ 25 mil no último governo. Em 2023, o atual Executivo federal ampliou para R$ 1,9 bilhão via medida provisória. Contudo, de acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o Programa 2318, que trata da gestão de riscos e desastres, sofreu uma redução de R$ 200 milhões em 2024 e caiu paraÊR$ 1,37 bilhão na versão final da Lei Orçamentária Anual (LOA) neste ano.
Felizmente, a sociedade conta com verdadeiros heróis que salvam vidas. O grupo de socorristas voluntários Anjos do Asfalto é uma organização que atua em catástrofes e desastres naturais em diversas regiões do Brasil, demonstrando um modelo de solidariedade e eficiência que é referência nacional. O trabalho começou na BR-381, em um dos trechos mais perigosos, popularmente chamado de Rodovia da Morte. Profissionais de diferentes áreas, como médicos e enfermeiros, realizam o atendimento de primeira resposta até chegada do Samu e do Corpo de Bombeiros.
A excelência desse trabalho permitiu que os Anjos do Asfalto expandissem sua atuação para situações extremas de desastres naturais como as do rompimento da barragem de Brumadinho, das enchentes do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro.
“São mais de 20 anos de uma organização que demonstra que o voluntariado profissional tem impacto real na prevenção de perdas humanas. Trabalhamos com alto nível de capacitação, profissionalização, integração e espírito solidário para salvar vidas e, ao participarmos do evento Desastre 360, percebemos que estamos no caminho certo e que temos plena capacidade de atuar ainda mais integrados com os atores responsáveis pela preparação e por resposta em eventos extremos com parceria e complementariedade. Nossa vontade é que eles não acontecessem, mas essa não é a realidade que estamos vivenciando. Por isso, mantemos nosso compromisso de aprimoramento constante e de ajuda sempre que for preciso”, conclui o presidente dos Anjos do Asfalto, Geraldo Eugênio de Assis.











AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião de Revista Entrevias. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. Revista Entrevias poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.







_17.57.36_72b2df8e.jpg)

.jpg)
_copy.jpg)
_copy.jpg)


