CARGA NA LAMA

Principal corredor de escoamento da safra de soja, BR-163 vira atoleiro e coloca em risco vida do motorista e economia da região.

Capa / 14 de Março de 2018 / 0 Comentários
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Se de um lado o agronegócio segura a atividade econômica do Brasil, de outro ele enfrenta desafios logísticos no Centro-Oeste brasileiro. A BR-163 é uma rota importante de escoamento da produção de grãos, especialmente a soja, mas, bem no meio do caminho, termina o asfalto para começar uma longa estrada de chão. Muitos trechos dessa rodovia estão ruins, e a safra ainda coincide com o chamado inverno amazônico, quando chove bastante na região.

São filas de caminhões parados na BR-163, no Pará, por causa da situação precária da rodovia. A cada ano a história se repete: a rodovia é interditada por conta dos atoleiros. Toneladas de grãos encalham no lamaçal porque os caminhões não conseguem sair do lugar. Recentemente, a chuva deu uma trégua, mas a rodovia ainda exige sacrifício e paciência dos caminhoneiros. Diariamente, 70 mil veículos passam pela BR-163, e 68% deles são caminhões.

A Polícia Rodoviária Federal (PRF) montou a operação Radar para auxiliar os motoristas que enfrentam problemas para trafegar pela rodovia. A operação conta com a participação do Exército brasileiro e tem o objetivo de garantir a trafegabilidade da rodovia durante o inverno amazônico.

Além disso, a sinalização é precária, o asfalto é cheio de ondulações, e falta acostamento. A terceira pista é uma das principais reivindicações, especialmente nos locais de defeitos, para facilitar a passagem dos veículos menores. No dia 24 de fevereiro, dirigentes de ao menos 20 entidades cobraram a duplicação da rodovia no Norte e no Médio Norte, onde há intenso tráfego de carretas e caminhões e ocorrem graves acidentes com vítimas fatais. O tráfego ficou parcialmente interditado devido à manifestação, e a passagem dos veículos foi bloqueada.


Pauta antiga

Após o protesto, os representantes das entidades se reuniram na Câmara Municipal de Lucas do Rio Verde (MT) para cobrar melhorias na manutenção da rodovia federal e o início imediato da duplicação. Eles devem elaborar um documento para ser encaminhado ao Ministério Público do Mato Grosso, que pode ser transformado em ação contra a concessionária, responsável por 30 anos pelo trecho.

A Rota do Oeste é a empresa da Odebrecht Rodovias que ganhou a concessão da BR-163 entre os municípios Itiquira (MT) e Sinop (MT), com extensão de 850,9 km. A empresa assumiu a administração da rodovia em 20 de março de 2014, por meio de um contrato de concessão firmado com o governo federal. O documento prevê o investimento de R$ 3,9 bilhões até 2019 e um total de R$ 6,8 bilhões em 30 anos na duplicação, na recuperação, na manutenção e na conservação da rodovia, bem como na implantação de melhorias e serviços ao usuário. Cabe à Rota do Oeste a duplicação de 453,6 km nos trechos entre a divisa com o Mato Grosso do Sul e Rondonópolis, de Posto Gil a Sinop, além da rodovia dos Imigrantes.

As demais extensões já estão duplicadas, em fase de duplicação ou vão receber as obras (400 km) pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). A manutenção e a conservação desses trechos serão transferidas para a Rota do Oeste após a conclusão das intervenções, previstas para ser entregues em até cinco anos.

Ao longo dos 850 km da BR-163 sob a concessão da Rota do Oeste foram instaladas e estão ativas nove praças de pedágio, a uma distância média de 100 km cada. Desde 6 de setembro de 2015, a taxa de passagem dos veículos está sendo cobrada. Do início da cobrança até 31 de dezembro de 2016, foram arrecadados R$ 499 milhões. E, nesse período, a Rota do Oeste investiu R$ 1,7 bilhão na manutenção e na conservação da BR, bem como nos serviços operacionais na rodovia.

Em março de 2016, foi entregue o primeiro segmento duplicado no trecho de responsabilidade da concessionária. A Rota do Oeste aderiu à Medida Provisória (MP) 800/2017, que permite à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) realizar, de comum acordo com as concessionárias, a reprogramação de investimentos em concessões rodoviárias federais cujos contratos prevejam concentração de gastos em seu período inicial, uma única vez.

A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR) apontou que a duplicação da BR-163 em Mato Grosso depende da aprovação na íntegra dessa MP, que vai auxiliar na continuidade e na retomada da duplicação de 453,6 km - sob concessão da Rota do Oeste, nos trechos entre a divisa com o Mato Grosso do Sul e Rondonópolis, de Posto Gil a Sinop, além da rodovia dos Imigrantes. A votação está prevista para ocorrer nos próximos meses, na Câmara e no Senado.

Até agora, foram duplicados 117,6 km na região Sul do Estado. No Nortão, não há duplicação, exceto em trechos nos perímetros urbanos de Sinop e Sorriso. Ao todo, 19 municípios estão compreendidos na extensão concedida, entre eles a capital mato-grossense, Cuiabá, e as cidades de Rondonópolis, Nova Mutum, Lucas do Rio Verde, Sorriso e Sinop, principais produtores agrícolas do Estado campeão na produção de grãos e leguminosas.

Em nota, a Rota do Oeste esclarece que participa de forma rotineira e transparente de debates sobre a BR-163 junto aos municípios impactados. Afirma que o início da segunda etapa de duplicação ainda não ocorreu devido à não liberação do financiamento pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico (BNDES), conforme acordado na época do leilão de concessão. Dessa forma, segundo a concessionária, toda a receita obtida nos pedágios é destinada ao cumprimento das outras obrigações contratuais, como os atendimentos médicos e de guincho, além das obras de manutenção do pavimento. “Esse não é um problema enfrentado exclusivamente pela Rota do Oeste. A situação é semelhante em todas as concessionárias da terceira etapa do Programa de Investimentos em Logística (PIL), implantado em 2014”, explica a concessionária.

Acidentes

A Rota do Oeste informa ainda que, em janeiro de 2018, foram registradas seis mortes no trecho da BR-163 sob sua concessão, mesmo número de janeiro de 2017.

O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) afirma que a meta de asfaltar 60 km da BR-163 não foi totalmente atingida por causa da antecipação do período de chuvas e de atrasos no fornecimento de matéria-prima. A previsão agora é que a pavimentação seja concluída em 2019.

Na conta do transportador

O impasse prejudica a sociedade e os transportadores, responsáveis pelo escoamento da produção. Eles enfrentam filas durante horas e, devido à infraestrutura precária, colocam em risco sua própria vida. São prejuízos nos negócios e na saúde física e mental dos trabalhadores. “Já estou na fila tem três horas e meia. É cansativo, deixa a gente um pouco nervoso. Se o governo quisesse, ele conseguiria arrumar a estrada e ao menos diminuir nosso sofrimento. Deveriam olhar mais um pouco para nós porque a situação está crítica”, diz o caminhoneiro Edilson Oliveira em uma reportagem.

“Desta vez deu prejuízo. A gente trabalha com comissão. A comissão que se ganha em quatro dias vamos levar dez para ganhar. No fim do mês fica difícil”, conta outro transportador.

A infraestrutura adversa somada à crise econômica no Brasil impacta de forma cruel o transporte rodoviário de cargas. “Operamos muito na região Sudeste do país, mas é sabido o estado de não conservação das estradas brasileiras em diversas localidades. Trabalhar nesse cenário é penoso. O custo do transporte aumenta em função de manutenções e consertos, e o valor não é repassado. O resultado é que as transportadoras estão definhando, operando no limite”, ressalta o diretor do Sindicato das Empresas de Transportes de Carga do Estado de Minas Gerais (Setcemg), Ulisses Cruz.

A ausência de estrutura rodoviária adequada reduz a eficiência do transporte, compromete a segurança dos usuários e encarece em até 40% o custo do serviço. Além disso, a sobrecarga da rodovia produz lentidão, buracos e risco de acidentes, gerando prejuízo para os transportadores. “Uma estrutura que já era ruim, com a paralisação de investimentos e obras, vai ficar caótica”, critica Ulisses Cruz. “Com as obras paradas, ou seja, com bloqueios na pista, restou-nos mais tempo de viagem e mais consumo de combustível, de pneus e de componentes de suspensão”, acrescenta.

O presidente do Sindicato dos Cegonheiros de Minas Gerais (Sintrauto), Carlos Roesel, reforça a correlação da infraestrutura com a atividade do transporte. “O modal rodoviário é um dos principais setores responsáveis pelo desenvolvimento do país. Promove a circulação de bens e produtos e gera emprego e renda. Contudo, não é priorizado nas políticas públicas: faltam investimentos em estrutura viária e incentivos para o desempenho adequado das empresas”, salienta.

Investir é preciso

O “Relatório da Competitividade Global 2015-2016: Posição da Qualidade Geral de Infraestrutura” mostra que o Brasil ocupa a 123ª posição entre 140 países analisados. O estudo informa que o Estado brasileiro deveria investir 4% do PIB por ano em infraestrutura, e, para isso, seriam necessários recursos na ordem de R$ 240 bilhões.

Sem dúvida, esse quadro é reflexo imediato da redução de investimentos em infraestrutura ao longo das últimas décadas. Para se ter uma ideia, em 1975, o percentual do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil era 1,8% e, em 2015, caiu para 0,19%.

Os investimentos do governo federal em infraestrutura rodoviária representaram 71,64% do total de aportes realizados no setor de transporte entre 2004 e 2016. Essa alta participação está relacionada à preponderância do modal na matriz brasileira de transporte de cargas e de passageiros.

Apesar dessa relevância, os dados mostram uma queda dos recursos destinados aos investimentos a partir de 2012. A crise econômica que atingiu o país em 2014 repercutiu no orçamento do governo, e, em 2016, o montante autorizado para o transporte rodoviário representou 69,1% do autorizado em 2015, que já havia sido contingenciado.

O cenário piora com a análise dos valores efetivamente investidos pelo governo federal. Percebe-se que os investimentos de 2015 regrediram a níveis observados entre 2009 e 2010. Note-se que, em 2015, apesar de o valor autorizado para o pagamento de intervenções em infraestrutura rodoviária ter sido inferior ao dos anos anteriores, o governo federal não conseguiu aplicar todo o recurso previsto. No ano, foram desembolsados R$ 5,95 bilhões, ou seja, 63,5% dos R$ 9,37 bilhões autorizados. Os R$ 3,42 bilhões não gastos poderiam ter financiado a manutenção de cerca de 11 mil km de rodovias.

Já o ano de 2016 mostra-se distinto dos demais anos, com um percentual de total pago acima de 100% do montante autorizado devido à diretriz de se quitarem as contas a pagar de anos anteriores. Isso fez com que o investimento efetivamente realizado em 2016 ficasse acima dos valores autorizados. Todavia, isso não significa, necessariamente, que as rodovias geridas pela União receberam mais intervenções.

Um aspecto relevante sobre o comportamento dos investimentos em infraestrutura rodoviária é que, desde 2012, houve uma reestruturação do tipo de gasto público, com maior concentração em intervenções como manutenção e recuperação. Assim, os recursos destinados à manutenção e à recuperação de rodovias têm aumentado sua participação no total desembolsado pelo governo federal. Em 2004, o percentual investido em adequação e construção de BRs foi de 52,2%, enquanto o aportado a ações de recuperação e manutenção alcançou 30,7%. Em 2016, esses percentuais foram: 28,1% e 64,3%, respectivamente.

História

A BR-163 começa em Cuiabá, no extremo sul do Mato Grosso, e segue para o Norte por mais de 1.000 km, mergulhando diretamente na Amazônia. Sua construção fez parte do Plano de Integração Nacional (PIN), do governo militar e pertencia ao movimento desencadeado na época, cujo tema era: “Integrar para Não Entregar!”

Sob pressão para ocupar a região amazônica, o governo determinou que o Batalhão de Engenharia e Construção (BEC) do Rio Grande do Sul fosse para Cuiabá e instalasse uma base com o objetivo de implantar a BR-163, ligando a capital mato-grossense a Santarém, no Pará.

Em 1971, o então coronel Antônio Paranhos inaugurou o 9º Batalhão de Engenharia e Construção (9º BEC) e começou a abertura da estrada que viria a interligar a região Norte do país às Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Ao mesmo tempo em que foi criado o 9º BEC, em Santarém foi instalado o 8º BEC, que tinha a mesma missão, mas em sentido oposto (Sul-Norte).

Foram cinco anos de muito trabalho, desafios e também perigos, pois se tratava da ocupação de uma região inóspita, nunca antes habitada por “homens brancos”. Ainda em 1971, coronel José Meireles assumiu o comando do 9º BEC e deu início aos trabalhos. A tribo Kreen-aKarore, conhecida como os “Gigantes da Amazônia”, ainda não tinha contato com outros homens, e foi preciso convidar os antropólogos Orlando Villas-Bôas, Cláudio Villas-Bôas e Leonardo Villa-Bôas para intervir na aproximação dos índios com os construtores da BR-163.

Além da distância, havia muita dificuldade para transportar os equipamentos pela falta de pontes e de estradas alternativas. Um avião era utilizado para levar alimentos para os trabalhadores quando estavam isolados ou longe do alojamento. Foi durante o processo de construção da BR-163 que muitas cidades foram fundadas às margens da rodovia. São os casos de Lucas do Rio Verde - antigo acampamento dos trabalhadores -, Sinop, Peixoto de Azevedo, entre outros municípios.

As situações enfrentadas por esses desbravadores eram críticas. Doenças tropicais, isolamento e até o contato com tribos indígenas traziam muitos problemas aos trabalhadores e aos militares. Oficialmente, o Exército registrou a morte de 32 homens durante as obras de implantação da BR-163. Nenhuma foi causada por acidente, todas decorrentes de doenças, como a malária.

A construção do porto de Santarém começou em 1999 e foi concluída em 2003 pela Cargill, a maior empresa privada dos Estados Unidos. Apesar de essa corporação não ter feito o estudo de impacto ambiental solicitado, fato que resultou em sucessivas declarações de ilegalidade do terminal por parte dos tribunais brasileiros, o porto começou a funcionar.

Essa obra foi um movimento estratégico que permitiu que a soja chegasse ao mercado de forma mais rápida e barata do que antes. O produto podia embarcar do Mato Grosso para o norte pelo rio ou ir de caminhão pela BR-163. No terminal de Santarém, a soja podia ser descarregada e armazenada antes de ser levada diretamente para a Europa através do rio Amazonas. Também foi um incentivo para os agricultores do Mato Grosso: a terra era barata em torno de Santarém, e uma fazenda de soja construída próximo ao terminal da Cargill economizaria tanto na terra como nos custos de transporte. Os fazendeiros rumaram em peso para o norte. Em 2004, um ano após a abertura do terminal, o cultivo da soja na área saltou para 35 mil hectares (um aumento de mais de 2.000% em cinco anos).

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