Mal oculto nas estradas

Fake news relacionadas ao transporte rodoviário de cargas prejudicam tanto a atuação dos profissionais quanto a sociedade

Capa / 09 de Julho de 2021 / 0 Comentários
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Tão prejudiciais quanto a precariedade das rodovias, a insegurança, a ausência de pontos de apoio e as condições degradantes de trabalho são as notícias falsas (ou fake news, na expressão em inglês) referentes ao transporte. Com o advento das mídias digitais, todo cidadão se tornou um difusor de conteúdo, bastando para isso ter um celular em mãos. A democracia do compartilhamento, no entanto, esbarra na legitimidade das informações. Algumas são facilmente identificadas como improcedentes, mas outras nem tanto.

Recentemente, circulou pelas redes uma mensagem afirmando que um caminhoneiro havia sido multado porque o veículo dele trafegava com pneus recapados nos eixos de tração. Essa informação, porém, não era verdadeira. Atualmente, as resoluções do Conselho Nacional de Trânsito não proíbem esse tipo de recurso nos caminhões, vedando o uso apenas em ônibus e micro-ônibus. “A Polícia Rodoviária Federal (PRF) apura todas as considerações recebidas em seus canais de relacionamento com a sociedade. Se é identificada a procedência, as medidas necessárias para correção são tomadas. Nesse caso, até o momento, não recebemos uma notificação”, afirma o chefe da comunicação social da PRF/MG, inspetor Aristides Júnior.

Ele pontua que, caso o motorista se sinta injustiçado por alguma autuação de infração de trânsito, o caminho é requerer a correção por meio de recurso. “A PRF é formada por profissionais permanentemente capacitados para o melhor desempenho da sua atividade. Porém, todos nós estamos suscetíveis a erros e, por isso, o caminhoneiro pode acionar o ‘Fale Conosco’, a caixa-alta e a Corregedoria para solicitar a revisão da autuação”, ressalta o inspetor.

Um fenômeno observado pelo representante da PRF/MG nos últimos anos é a divulgação da aplicação de multas em detrimento do acionamento dos canais de relacionamento oficiais da corporação. “Virou um momento de desabafo, ou, às vezes, de minutos de fama, sem contextualização do cenário real. A multa executada por qualquer autoridade de trânsito causa desgosto, isso é natural. Contudo, é preciso muita responsabilidade no compartilhamento das informações, pois elas podem causar prejuízos aos agentes, à instituição e à sociedade”, afirma o chefe da comunicação.

Notícia Quente

As autuações, normalmente, são as principais motivadoras dos conteúdos que não correspondem à realidade: seja por causa da “injusta” aplicação – na percepção do condutor – seja pelo custo financeiro. Em maio deste ano, por exemplo, circulou pela internet uma mensagem que divulgava novos valores para as infrações de trânsito. Essa informação fake pode ter sido motivada pelas recentes alterações promovidas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), embora nenhuma delas esteja relacionada a multas.

O texto compartilhado nas redes sociais tratava de um aumento expressivo no valor cobrado em decorrência do cometimento de determinadas infrações de trânsito, como ser flagrado falando ao celular. Segundo a mensagem, a multa teria saltado para R$ 1.574. Na prática, porém, a infração correspondente ao uso do telefone, segundo o CTB, é passível de dois tipos de autuação: dirigir com apenas uma das mãos por estar segurando ou manuseando o aparelho – infração gravíssima, com multa de R$ 293,47 – e dirigir com apenas uma das mãos, com fones de ouvido ou usando o celular – infração média, com multa de R$ 130,16.

Outro conteúdo inapropriado que ganhou muitos compartilhamentos foi a propagação da informação de que um caminhoneiro de Porto Alegre (RS) teria cometido suicídio depois de saber que foi multado em R$ 400 mil por causa de um bloqueio durante uma greve. Uma pesquisa nas fotos que acompanhavam a mensagem revelou que elas eram, na verdade, de outro caminhoneiro, encontrado morto dois anos antes em Maringá (PR).

Esse caso evidencia outra característica comum às informações falsas: a descontextualização. Em algumas situações, as notícias podem até ser reais (como a morte do transportador), mas são inseridas em cenário e momento diferentes.

Para os motoristas, o alerta é para que fiquem atentos às mensagens sobre bloqueios e fechamentos de estradas. A orientação é sempre confiar na comunicação oficial do órgão responsável pelo trecho, já que, em alguns casos, as mentiras compartilhadas podem ser armadilhas para o roubo de cargas.

Um vírus perigoso

Além de exporem a riscos e desinformação, as chamadas fake news podem carregar interesses que prejudicam a imagem e a idoneidade de pessoas e organizações. Recentemente, circularam pelas redes sociais mensagens dando conta de que uma grande transportadora da região metropolitana de Belo Horizonte reduziria em 15% o seu quadro de pessoal. “Essa informação falsa nos prejudicou profundamente, pois os motoristas e outros profissionais que atuam em nossa operação entraram em desespero perguntando quando a lista de demitidos seria divulgada. É muita irresponsabilidade de quem dissemina esse tipo de informação. Já estamos em um momento muito delicado, com um alto índice de desemprego, e esse tipo de notícia causa mais insegurança e instabilidade. Conversamos muito com os nossos colaboradores para que eles confiem sempre nas informações institucionais e em seus líderes”, diz a gestora de recursos humanos da empresa, que não terá o nome divulgado para preservar a instituição.

Além de todos os malefícios já relacionados, as informações inverídicas criam falsas expectativas. Atualmente, é preciso ter cuidado redobrado com os anúncios de oportunidades de trabalho. A internet se tornou o principal meio de divulgação de vagas, e muitos sites se especializaram em serviços de recolocação profissional. Mas fique atento: muitos portais se dedicam à criação de empregos que não existem, e, quando o candidato preenche os dados, pode ter as informações pessoais usadas de maneira ilícita.

Outras mídias – como o LinkedIn (que tem o objetivo de criar conexões profissionais e corporativas) e o WhatsApp – também são usadas para divulgação de vagas. Por isso, desconfie de oportunidades em que os benefícios estejam muito acima dos praticados pelo mercado. Outra dica: anúncios sem o nome do cargo nem detalhes da organização são altamente suspeitos. Não envie informações pessoais e profissionais nem pague pelo serviço antes de apurar todos os dados da empresa contratante e/ou da responsável pelo processo seletivo.

Interesse social

Parece contraditório, mas as notícias falsas se espalham muito mais facilmente pela internet do que as verdadeiras. Essa é a conclusão de um estudo realizado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), uma instituição de ensino estadunidense reconhecida mundialmente pela qualidade dos cursos de ciências exatas e de áreas vinculadas à tecnologia.

Os pesquisadores analisaram 126 mil mensagens (não apenas notícias jornalísticas) divulgadas na rede social Twitter ao longo de 11 anos. No total, 3 milhões de pessoas publicaram ou compartilharam essas histórias 4,5 milhões de vezes. O caráter verdadeiro ou falso dos conteúdos foi definido a partir de análises realizadas por seis instituições profissionais de checagem de fatos.

Os autores estimaram que uma mensagem falsa tenha 70% mais chances de ser retransmitida (ou retuitada, no jargão da rede social) do que uma verdadeira. As principais notícias falsas analisadas chegaram a ser disseminadas com uma profundidade oito vezes superior à das legítimas.

O alcance também foi maior. Enquanto os conteúdos verdadeiros atingem mil pessoas, as principais mensagens falsas são lidas por até 100 mil Isso acontece devido à “viralização” do conteúdo: ou seja, quando a pessoa compartilha, ele se dissemina.

Mas por quê?

Uma explicação para esse fenômeno apresentada no estudo do MIT seria a novidade das mensagens. As publicações falsas compartilhadas com maior frequência eram mais recentes do que as verdadeiras. Outra motivação destacada pelos pesquisadores foi a reação emocional provocada pelas mensagens. Analisando uma amostra de tuítes, foi observado que neles havia mais sentimentos de surpresa e desgosto, enquanto os conteúdos verdadeiros inspiravam tristeza e confiança.

O ineditismo também chama a atenção. Situações que se destacam em relação àquelas tidas como ordinárias são mais atraentes e tendem a ser mais compartilhadas. A doutora em direito penal pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro Mariel Muraro disse ao site EcoDebate que as pessoas acessam e acreditam nas fake news porque a linguagem utilizada nelas é de fácil compreensão, com chavões e temas atuais que estão na pauta do dia.

Responsabilização judicial

Devido aos estragos, os autores e os disseminadores de informações falsas podem ser responsabilizados judicialmente pelas leis vigentes no Brasil, sejam elas de natureza cível, penal, eleitoral ou administrativa.

Por exemplo: difamação, calúnia, injúria racial, discriminação por gênero e/ou orientação sexual e crime contra a honra são transgressões previstas pelo Código Penal. No âmbito eleitoral, a pessoa que divulga informações falsas está sujeita às penalidades da Lei nº 13.834/2019, contra fake news eleitoral, que atualizou o Código Eleitoral tipificando o crime de denunciação caluniosa com fins eleitorais.

“As redes sociais e os aplicativos de comunicação são, sem dúvida, fundamentais para os caminhoneiros. Por meio deles, os profissionais têm acesso a diversas informações que ajudam no desempenho da atividade e mantêm redes de colaboração e amizade. Porém, é preciso muito discernimento e atenção ao receber e repassar um conteúdo. A ‘viralização’ pode ser muito perigosa”, frisa o inspetor Aristides Júnior.

“Viralização” responsável

Quem acha que a disseminação de conteúdos enganosos não deixa pistas se engana. Atualmente, a tecnologia é capaz de rastrear a notícia falsa e o comportamento dos usuários. Por isso, confira, duvide, questione e interrompa a corrente de fake news.

Alguns caminhos ajudam nesse processo: verifique se a mídia (jornal, revista ou portal de comunicação) discute o assunto e/ou confira nas principais agências de checagem existentes hoje no Brasil e relacionadas no site do Conselho Nacional de Justiça (https://www.cnj.jus.br/).

Existem também algumas ferramentas interessantes que ajudam na checagem rápida de informações. Uma delas é a Fake Check (https://nilc-fakenews.herokuapp.com/), um site desenvolvido por pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de São Carlos. Nele, é possível copiar e colar um texto, e a inteligência artificial da plataforma faz a checagem do conteúdo.

Frete enganoso

“Diariamente, recebo relatos de motoristas que identificam falsos fretes por meio de aplicativos. Algumas ferramentas facilitam o trabalho dos transportadores, apontando oportunidades de prestação de serviços. No entanto, muitas criam armadilhas que resultam no roubo do profissional e da carga”. O alerta é de um dos principais formadores de opinião das estradas, o caminhoneiro Claudemir Travain. O paranaense, que já foi destaque em outras edições da Entrevias, é referência em conteúdo digital com o canal Realidade de Caminhoneiro, no qual ele mostra o dia a dia dos profissionais com vídeos postados no YouTube e em páginas do Facebook e do Instagram.

Os apps aos quais Travain se refere divulgam propostas de fretes e “vendem” como diferencial a exclusão do atravessador tanto para localidades próximas quanto para distantes. Em alguns casos, as plataformas podem até ser vítimas de pseudo-auxiliares, que, na verdade, são cumplices do roubo. As plataformas mesmo com controles rígidos, são usadas por pessoas que criam perfis falsos,  esses perfis são criados por integrantes de quadrilhas de roubo de caminhões.

“Os ladrões são articulados, utilizam muitos métodos para conseguir atrair as vítimas e têm artimanhas para enganar o transportador. São golpistas profissionais. Por isso, é preciso desconfiar sempre de fretes com valores mais altos do que os praticados no mercado e buscar o máximo de informações antes de aceitar o serviço”, ressalta o paranaense.

Informação a serviço do transporte

A responsabilidade do canal Realidade de Caminhoneiro é reconhecida pelo público, e as mídias digitais alcançam números expressivos de seguidores. Contudo, o engajamento às vezes incomoda, e Travain precisa enfrentar questões peculiares do ambiente digital: como o conteúdo tem muita visualização em um curto período de tempo, algumas pessoas fazem denúncias sem critérios, e as plataformas acabam bloqueando as páginas.

“Recentemente, aconteceu uma situação muito triste: um amigo que cria jacarés em cativeiro, de forma sustentável e responsável, me encaminhou um vídeo mostrando o transporte do animal. Outras pessoas também publicaram e ‘viralizaram’, e nós divulgamos no Instagram. Rapidamente, alcançamos 35 mil visualizações, e aí alguém denunciou, alegando que o conteúdo era impróprio. Por isso, ficamos bloqueados para postagem e para realizar lives”, relembra Travain.

Esse impedimento comprometeu o objetivo da página. Estavam previstas postagens de utilidade pública para os transportadores e um bate-papo ao vivo com motoristas brasileiros que atuam em várias partes do mundo. Perguntado se situações como essa o desanimam, o influenciador desabafa: “É um balde de água fria. Porém, olho para tudo o que fazemos, como um dos vídeos mais recentes sobre um motorista que perdeu a perna em um acidente e que conseguimos, graças à ampla divulgação, ajudá-lo a conquistar a habilitação de motorista profissional no Estado de São Paulo, e avalio que vale a pena! Vamos manter nossa corrente do bem com responsabilidade e veracidade”, conclui o profissional.

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