O potencial feminino no transporte

Mulheres desconstroem estigma de que setor é predominantemente masculino e mostram sua competência no trabalho

Capa / 27 de Março de 2019 / 0 Comentários
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O setor de transportes brasileiro conta com cerca de 2,2 milhões de profissionais, sendo 17% do sexo feminino. A maior parte das mulheres possui entre 30 e 39 anos e ensino médio completo. Os dados são da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e apresentam uma oportunidade. Segundo o estudo “Perspectivas Sociais e de Emprego no Mundo – Tendências para Mulheres 2017”, criado e divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), diminuir a diferença nas taxas de participação entre homens e mulheres no mercado de trabalho produziria benefícios significativos para a sociedade e até para a economia em nível global. Se essa diferença se reduzisse em 25% até 2025, poder-se-ia adicionar US$ 5,8 trilhões à economia global e aumentar as receitas fiscais.

“Meus familiares e amigos brincam que tenho óleo diesel nas veias. Comecei a trabalhar fazendo serviços externos, ajudando minha mãe nas atividades financeiras, ainda adolescente. Quando ela faleceu, assumi todas as funções administrativas. Na época, era jovem e fui aprendendo com os desafios da vida e da empresa. Antes, atuava com poucas cegonhas, e, graças a muito trabalho com minha família, vencemos as adversidades e buscamos um crescimento conjunto, pois o transporte tem a capacidade de desenvolver uma cadeia de geração de emprego e renda.”
Juliana Moraes da Silveira Carvalho, sócia da Transportadora Moraes e Silveira


O transporte rodoviário de cargas caminha nessa direção, sendo visível a participação de mulheres nos negócios. A sócia da Transportadora Moraes e Silveira, Juliana Moraes da Silveira Carvalho, atua há mais de 20 anos na empresa de sua família. “Parentes e amigos brincam que tenho óleo diesel nas veias. Comecei a trabalhar fazendo serviços externos, ajudando minha mãe nas atividades financeiras, ainda adolescente. Quando ela faleceu, assumi todas as funções administrativas. Na época, era jovem e fui aprendendo com os desafios da vida e da empresa. Antes, atuava com poucas cegonhas, e, graças a muito trabalho com minha família, vencemos as adversidades e buscamos um crescimento conjunto, pois o transporte tem a capacidade de desenvolver uma cadeia de geração de emprego e renda”, comemora a empresária – que, carinhosamente, é chamada de “Scania” por amigos e familiares.


Procura feminina por cursos no Sest/Senat tem aumentado nos últimos anos.

Carteira assinada e equiparação salarial ainda é um desafio para muitas mulheres.

Juliana Martins, que faz parte da diretoria operacional do Grupo RP e da Federação das Empresas de Transportes de Carga do Estado de Minas Gerais (Fetcemg), relata que atua no segmento de transportes há 30 anos, tendo iniciado suas atividades aos 16 anos, na empresa da família. “Minha primeira tarefa foi fazer conferência de fretes; depois, passei pelo almoxarifado, para entender um pouco de peças e como comprá-las (quando iniciei nesse setor, os próprios funcionários e vendedores das lojas de peças riam, como se não acreditassem que uma jovem mulher pudesse desempenhar essa função). Em seguida, fui para o faturamento, emitindo notas fiscais, e para a montagem de cargas (hoje chamada de ‘logística’, mas, naquela época, não se utilizava essa nomenclatura). Passei, depois, pelo financeiro e por todos os setores da empresa. Somente após isso, com 12 anos de empresa, assumi cargo de gerência. Meu pai sempre dizia que, para gerenciarmos alguma coisa, primeiramente, temos que aprender a fazê-la, e assim foi minha trajetória inicial”, relembra Juliana.


Entre suas principais conquistas, a empresária elenca a participação na diretoria da Fetcemg e do Sindicato das Empresas de Transportes de Carga do Estado de Minas Gerais (Setemg) – que representam o segmento. Sua formação e sua especialização possibilitaram a aplicação de conhecimento na própria empresa, que, hoje, está na segunda geração. “Seguimos com o desafio de buscar cada dia mais a profissionalização de uma organização familiar, mantendo-a atualizada e competitiva”, planeja Juliana, que é formada em relações públicas e pós-graduada em marketing e em gestão de negócios.

Universo masculino?

Questionada se ainda há o estigma de que o transporte rodoviário de cargas é para homens, Juliana Moraes enfatiza que acredita, há algum tempo, isso vem mudando, e ela se orgulha de observar mais mulheres atuando como motoristas. Contudo, Juliana Martins aponta que, em cargos de gestão, ainda são poucas em relação ao número de homens.

Atualmente, elas ainda são minoria nesse setor. Mas, nos anos 1980, não havia praticamente nenhuma mulher. Quando eu e minha irmã comparecíamos aos eventos do segmento, em torno de 300 a 400 pessoas, basicamente estávamos eu, ela e mais duas jovens (éramos sempre nós quatro). Os homens nos olhavam como se estivessem enxergando fantasmas, mas nunca faltou respeito conosco”, conta.

A diretora da Lubert Transportes de Cargas, Lucinete Aparecida Vieira, pontua que, apesar de o setor contar mais com a participação masculina, sempre foi respeitada por seus colaboradores (motoristas) e parceiros. “Iniciei minha carreira nessa área por meio de meu pai, que me incentivou a trabalhar desde muito cedo e percebeu que eu tinha muito gosto pelo que fazia”, diz ela.

Atualmente, suas principais funções na transportadora são fazer negociações nos valores de frete, cuidar da administração financeira e da logística, montar a escala de motoristas e rotas e acompanhar o setor de recursos humanos da empresa. “Minhas principais conquistas foram estabelecer minha própria empresa, juntamente com meu esposo e filho, prestar serviço para uma multinacional e ter um reconhecimento em excelência de qualidade”, diz.

Diferencial feminino

Para a empresária, a gestão feminina oferece atenção aos detalhes e uma capacidade diferenciada de organização. Juliana Martins acrescenta as características habilidade com as relações pessoais, valorização do clima organizacional e criatividade.

A opinião das duas é comprovada pelo relatório “Mulheres Importam: um motor de desempenho corporativo”, da Consultoria McKinsey, realizado em 2016. Foram pesquisadas 900 organizações em todo o mundo. As empresas que têm três ou mais mulheres em altos cargos de gestão pontuaram nas nove dimensões de eficiência da pesquisa: direção, liderança, cultura e clima, prestação de contas, coordenação e controle, inovação e aprendizagem, capacitação, motivação e orientação.

Segundo a coach de carreira para mulheres, que atua com o desenvolvimento de liderança feminina, Patrícia Giudice, o mercado já entendeu que a mulher tem e pode desenvolver habilidades e competências em qualquer área de atuação, mas, ao mesmo tempo, é necessário que as empresas desenvolvam estratégias na área de recursos humanos para que elas tenham as mesmas condições que os homens para ocupar cargos de liderança. “Empresas como e-Bay, Coca-Cola, Eletrobras, Unilever e, mais recentemente, a CNH Industrial, investem no desenvolvimento das mulheres numa perspectiva de criar lideranças e promover igualdade de gênero na organização”, destaca Patrícia.

Ela explica que as mulheres provaram que são capazes. Agora, as portas precisam se abrir para que elas também tenham chances de liderar. “Desenvolver essa liderança é importante porque, muitas vezes, a mulher tem uma grande capacidade, mas ela mesma não enxerga esse potencial e, por isso, não vislumbra os cargos mais altos. Representatividade, nesse caso, importa muito também, ou seja, quando se tem uma mulher na presidência ou na diretoria, ela não só puxa as outras, como também serve de espelho, o que é fundamental no desenvolvimento da carreira”, acrescenta a coach.

Emilie Worsham, analista sênior de sistemas de negócios da Omnitracs – empresa de soluções tecnológicas para o transporte –, examinou 7.538 empresas de caminhões sediadas nos Estados Unidos e comprovou que as mulheres são motoristas mais seguras. Ela descobriu que as condutoras compõem 12% do número total de motoristas que causam situações críticas, como excesso de velocidade, colisões e partidas de pista. Entre outubro de 2017 e setembro de 2018, as mulheres tiveram uma porcentagem menor de acidentes do que motoristas do sexo masculino – 7,5% contra 8,3%, respectivamente.

O American Transportation Research Institute (Instituto Americano de Pesquisas sobre Transporte, em tradução livre) colaborou com esses resultados. Essa instituição publicou uma análise que quantifica a probabilidade de envolvimento futuro de colisão em operadores de caminhões com base em certos comportamentos de direção. No geral, a pesquisa descobriu que as mulheres eram motoristas de caminhão mais seguras que os homens. Os homens foram 88% mais propensos do que as mulheres a ter atitudes de condução imprudente. O sexo também teve um impacto sobre a probabilidade de envolvimento em acidentes. Por exemplo, os homens eram 20% mais propensos a se envolver em um acidente do que elas.

Além de serem motoristas mais seguras, as mulheres geralmente permanecem em empregos de caminhões por mais tempo. A pesquisa de Worsham revelou que, entre outubro de 2017 e setembro de 2018, elas tinham uma taxa de rotatividade de 50%, e eles, de 62%.

Mercado potencial

Diante desse potencial, ainda que seja tímida, a procura feminina pelos cargos de condução começa a despontar. O projeto Habilitação Profissional para o Transporte – Inserção de Novos Motoristas, do Sest/ Senat, registrou a participação de 2.311 mulheres desde 2015. O curso visa inserir motoristas profissionais no mercado por meio da mudança da categoria da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) para C, D ou E. Além disso, em cinco anos, a demanda feminina cresceu 60,4% nos cursos voltados para o transporte de passageiros, de produtos perigosos e de transporte escolar da instituição. Em 2018, os cursos mais procurados pelas mulheres foram Cuidados Especiais no Transporte de Escolares, Custos Operacionais do Transporte de Cargas e A Precificação no Transporte Rodoviário de Cargas. 

Outra frente é o fomento ao potencial empreendedor das mulheres. Segundo levantamento de 2017 do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o empreendedorismo feminino mineiro vem dando sinais de crescimento. As mineiras já somam mais de 344,5 mil empreendedoras, mas dados disponibilizados pelo Sebrae e pelo Dieese de 2015 indicam que ainda há espaço para mais crescimento da participação de mulheres à frente de empreendimentos formais e geradores de postos de trabalho: enquanto elas representam 51,6% da população, ainda são apenas 26% dos empregadores no Estado. Nesse sentido, instituições financeiras começam a oferecer crédito diferenciado para empresas controladas por mulheres.


De acordo com pesquisa conduzida pela Rede Mulheres Empreendedoras em 2016, com 1.376 entrevistadas, 65% delas afirmaram que suas empresas não têm dívidas, mas 59% disseram que investiriam mais em suas empresas se tivessem acesso a melhores linhas de créditos, com juros menores. Segundo a Unidade de Inteligência Empresarial do Sebrae, as empresárias, de modo geral, são bem-instruídas: 44,8% delas têm ensino superior incompleto, completo ou com pós-graduação. Do total de mulheres, 7,3% são sócias em outros negócios. O empreendedorismo não foi empecilho à maternidade para 21,3% das entrevistadas, que alegaram que tiveram filho após a abertura do negócio.

A micro e pequena empresa administrada por mulheres é do setor de comércio (47,9%), não possui sócio em seu comando (50,9%), tem entre 11 e 20 anos de existência (34%) e foi fundada pela própria dona (50,9%). Do total de pequenas empresas sob o comando feminino, 18,1% delas não contêm empregados, e aquelas que possuem, na média, apresentam 6,4 empregados.

O setor de serviços é o segundo que mais tem empresas dirigidas por mulheres (35,2%), e 11,1% dos empreendimentos chefiados por elas foram comprados. Ainda, das empresas lideradas por mulheres, 22,1% delas vendem para o governo; 21,5% comercializam em outros Estados; 18,6% o fazem pela internet; e 3,6% exportam.

A mesma pesquisa revela que, de modo geral, 92,6% das mulheres realizam controles financeiros; 80% delas sabem quanto dinheiro precisam para pagar em dia seus compromissos; 87,7% oferecem formas de parcelamento para o cliente; 59,9% alegam receber em dia de seus clientes; e 67% afirmam não depender de capital de terceiros para manter suas empresas.

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