Sinistro sinistro

Profissionais do transporte rodoviário de cargas são impactados pela falta de critério na classificação do prejuízo, pela burocracia e pela demora na baixa do dano

Capa / 23 de Outubro de 2014 / 1 Comentários
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Envolver-se em um acidente e ter o veículo furtado ou roubado são situações traumáticas, que acarretam desgaste psicológico, social e, às vezes, físico. Além das sequelas desses atos, profissionais do transporte enfrentam uma série de desafios para seguirem com a vida e com o trabalho.

Há meses, especialmente no Estado de São Paulo, eles vivem adversidades para comunicar os sinistros e para baixar o dano nas documentações. Representante da categoria, José Verginio dos Santos, presidente da Associação de Caminhoneiros do Vale (Acav), conta o que vem enfrentando: “Nos meses de junho e agosto, solicitamos ao Departamento de Trânsito de São Paulo (Detran-SP) a baixa de veículos que sofreram sinistro, classificados em média monta. Foram realizados todos os procedimentos necessários e, mesmo assim, não obtivemos retorno”.

Quando há um acidente com veículo carregado, toda a estrutura do caminhão ou da carreta pode ser danificada. Só quem conhece do assunto é que pode avaliar "parcialmente" qual seria a classificação​.

Diante da falta de resolução, o presidente da Acav e seu vice, Cleverton de Rezende Marciano, buscaram pessoalmente a Ouvidoria do órgão em setembro. Em rápida busca na internet, encontram-se diversas queixas, inclusive em portais específicos para manifestar reclamações sobre prestações de serviços, sobre a demora na baixa da liberação de veículos que sofreram sinistro e foram recuperados.
A equipe de reportagem de Entre-Vias contatou a Assessoria de Comunicação do Detran-SP para buscar informações sobre o andamento dos processos e, exatamente no dia do fechamento desta matéria (6/10), recebeu o retorno de que o cadastro de um dos veículos “foi liberado para licenciamento e poderá voltar a circular normalmente.

“Graças à abordagem desta revista, conseguimos o retorno e a resolução das situações. Inclusive, a questão pendente também foi tratada pelo Detran-SP e agora daremos continuidade aos procedimentos, visando correr atrás do prejuízo sofrido pelos donos dos veículos. Foram mais de 100 dias aguardando a liberação”
José Verginio, presidente da Associação de Caminhoneiros do Vale (Acav)

 

 

No segundo caso, a solicitação está sob análise no Departamento de Sinistros do Detran-SP”.

“Graças à abordagem desta revista, conseguimos o retorno e a resolução das situações. Inclusive, a questão pendente também foi tratada pelo Detran-SP e agora daremos continuidade aos procedimentos, visando correr atrás do prejuízo sofrido pelos donos dos veículos. Foram mais de 100 dias aguardando a liberação”, pontua José Verginio.

IMPACTOS

Tão impactante quanto a busca da resolução dessas situações é a consequência na vida dos transportadores. Se a baixa não é realizada, automaticamente a documentação do veículo fica retida. Para os profissionais que necessitam do caminhão para trabalhar, o efeito é danoso. Além do tempo de reparo do estrago do veículo, que em alguns casos pode durar até dois meses, esses trabalhadores devem aguardar os procedimentos dos órgãos competentes.

Durante esse período, os compromissos assumidos – como parcela referente ao financiamento do próprio caminhão, mão de obra, contas da empresa e pessoais – não esperam. Nesse sentido, a atuação no setor fica ainda mais complexa, visto que são enfrentados os desafios da baixa remuneração do frete, infraestrutura precária, altos custos com combustível e manutenção.

NO PAPEL

A Resolução 362/2010 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) estabelece a classificação de danos em veículos decorrentes de acidentes e os procedimentos para a regularização ou baixa dos veículos envolvidos, e dá outras providências.

Esse documento ressalta a necessidade de lavrar o Boletim de Ocorrência de Acidente de Trânsito (BOAT). Concomitantemente, a autoridade de trânsito ou seu agente deve avaliar o estrago sofrido pelo veículo, enquadrando-o em uma das categorias: pequena, média ou grande monta. Essa classificação é composta por pontuação dada com base em informações quanto ao dano, contidas no “Relatório de Avarias”.


“O caminhão recuperado pode sofrer depreciações no momento da venda. Por isso, os agentes de trânsito devem ter sensibilidade na análise”
Marcio Arantes, presidente da Associação Particular de Ajuda ao Colega (Apac) Sul

 

No caso de reboques e semirreboques, caminhões e caminhões-tratores, são avaliadas separadamente as avarias ocorridas na cabine e/ou carroçaria e prejuízos no chassi do veículo.

Apesar da apresentação dos critérios de classificação, a prática mostra que é preciso avançar na parametrização. Marcio Arantes, presidente da Associação Particular de Ajuda ao Colega (Apac) Sul, diz que a instituição que representa vivenciou a ausência de padrão no momento da classificação. “Tivemos um sinistro próximo de Curvelo. A carreta bateu e caiu em um barranco. Apesar do impacto, não apresentou avarias, somente no cavalo, e o sinistro foi classificado como média monta, quando na verdade seria pequena. O contrário também acontece: grandes danos são rebaixados na classificação”, conta.

Marcio também representa a Associação de Benefícios e Proteção ao Amigo Caminhoneiro (Abpac) e ressalta que outros colegas enfrentaram a situação. Segundo ele, uma das dificuldades na classificação correta é o desconhecimento dos agentes de trânsito quanto à mecânica de um veículo pesado.

Neste caso, o chassi da carreta pode ter torcido, o que inviabilizaria o conserto do veículo.

“Por exemplo, certa vez, um caminhão bateu e o eixo foi arrancado. Automaticamente, foi classificado como grande monta. Contudo, saiu porque rompeu o parafuso, que custa em torno de R$ 20, somada a mão de obra, ao todo o gasto é de aproximadamente R$ 70”, conta.

Ele explica que algumas ações que acontecem com os veículos de grande porte, no momento do acidente, visam proteger o motorista e minimizar os impactos. Nesse sentido, entender o funcionamento dessas máquinas contribui para a correta aplicação dos critérios. “O caminhão recuperado pode sofrer depreciações no momento da venda. Por isso, os agentes de trânsito devem ter sensibilidade na análise”, completa.

“Para dar baixa, não aceitaram um procurador devidamente reconhecido, e foi preciso pagar os honorários de um advogado para conseguir realizar esse serviço. Não adianta ter somente regras, sem a sua aplicabilidade”
Jesus Gontijo de Andrade, presidente da Associação de Proteção e Ajuda ao Colega (Apac) Norte

 

Marcelo José Araújo, presidente da Comissão de Trânsito, Transporte e Mobilidade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Paraná, contextualiza que a primeira resolução que regulamentou esse assunto foi a 25/98 do Contran, no ano em que o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) começou a vigorar, e não estabelecia nenhum critério objetivo. “A atual decisão procura estabelecer parâmetros mais claros, mas obviamente o treinamento que os agentes recebem, a interpretação no caso concreto, entre outros fatores, além de ele não ser, na​ maioria das vezes, um perito nessa avaliação, fatalmente implicarão entendimentos diversos na classificação dos danos decorrentes de um acidente”.

CAMINHO LONGO

Passada a classificação do dano, o veículo sinistrado classificado com dano de grande monta terá seu cadastro bloqueado até que seja realizada a baixa permanente. O que obtiver a classificação de dano de média monta terá seu cadastro bloqueado, não podendo circular, ser transferido ou licenciado até que seja efetivado o desbloqueio do veículo, que dependerá do cumprimento dos seguintes requisitos: apresentação do Certificado de Registro de Veículo (CRV) e Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV) originais do veículo, bem como documentos de identificação da pessoa física ou jurídica e comprovante de residência ou domicílio.

Também são necessárias a comprovação do serviço executado e das peças​ utilizadas, mediante apresentação da nota fiscal de serviço da oficina reparadora, acompanhada da(s) nota(s) fiscal(is) das peças utilizadas; a apresentação do Certificado de Segurança Veicular (CSV) expedido por instituição técnica licenciada, autorizada pelo Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) e acreditada pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro); e a demonstração da autenticidade da identificação do veículo mediante vistoria do órgão executivo de trânsito ou de empresa por ele credenciada para tal fim.​

 Para uma pessoa que não tenha conhecimento, os danos neste veículo poderiam ser classificados como de média ou até mesmo grande monta. No entanto, os que conhecem sabem que apenas o eixo dianteiro pode ter corrido, o que consiste em um conserto simples.

“A Resolução 362/10 e as normas que a antecederam têm a finalidade de possibilitar que veículos acidentados e sua recuperação ofereçam as devidas condições de segurança. Porém, ela incorre em alguns conflitos jurídicos, como o caso de somente permitir a transferência para uma seguradora quando o veículo sofre dano de grande monta, ferindo o direito de propriedade daquele que, não sendo seguradora, seja responsável pela indenização, mas deseje ficar com o salvado. Não consegue prever situações em que, tendo havido acidente, não haja boletim de ocorrência, como inundações ou mesmo acidentes que não venham a ser atendidos e registrados na ocorrência”, avalia o advogado e especialista em trânsito Marcelo Araújo.


“Um caminhão foi roubado na região metropolitana de São Paulo e a ocorrência foi realizada dias depois pela polícia. As consequências de um veículo furtado rodando sem queixa podem ser desastrosas”
Rogério Mitraud Silveira, presidente da Associação dos Transportadores de Cargas Gerais (Ascarg)

 

 

 

ROUBO
Os casos de roubos de caminhões no Estado de São Paulo também desafiam a paciência das vítimas. Jesus Gontijo de Andrade, presidente da Associação de Proteção e Ajuda ao Colega (Apac) Norte, relata o excesso de burocracia para realizar a baixa de um veículo recuperado.

A Portaria 1.218/2014 do Detran-SP orienta os procedimentos necessários nessa situação. Contudo, Jesus Gontijo relata que neste ano um dos associados teve seu caminhão roubado na cidade e, após um tempo, foi encontrado. “Para dar baixa, não aceitaram um procurador devidamente reconhecido, e foi preciso pagar os honorários de um advogado para conseguir realizar esse serviço. Não adianta ter somente regras, sem a sua aplicabilidade”, critica.

De acordo com estatísticas do Sindicato das Empresas de Transportes de Carga de São Paulo e Região (Setcesp), o roubo de cargas naquele Estado, entre janeiro e junho deste ano, registrou 4.300 ocorrências, o que significa um acréscimo de 8,05% na média por mês de incidências em comparação à média mensal do ano anterior.

“Vamos apresentar os relatos ao deputado federal Nelson Marquezelli e pretendemos criar uma bancada específica do setor de transporte rodoviário de cargas na Câmara e no Senado, para tratar dessas e de outras situações que impactam diretamente a atividade profissional”
Luiz Carlos Neves, presidente da Federação Nacional das Associações de Caminhoneiros e Transportadores (Fenacat)

 

 

Embora esse cenário merecesse atenção do poder público, profissionais se deparam com a morosidade no registro da ocorrência. Rogério Mitraud Silveira, presidente da Associação dos Transportadores de Cargas Gerais, denuncia a demora na realização da queixa e inclusão do aviso no sistema nacional. “Um caminhão foi roubado na região metropolitana de São Paulo e a ocorrência foi realizada dias depois pela polícia. As consequências de um veículo furtado rodando sem queixa podem ser desastrosas .”

MOBILIZAÇÃO
Com vistas a chamar a atenção para as diversas adversidades, o presidente da Acav, José Verginio dos Santos, planeja uma articulação nacional e convoca profissionais e instituições que representam o setor a fazerem parte. “Não podemos admitir as omissões e a falta de comprometimento com o nosso trabalho pelo órgão de trânsito do maior Estado brasileiro. São Paulo é polo fundamental do transporte e precisa aprender com experiências de outros locais, como oferecer eficiência na prestação de serviço”, reivindica.

“Teoricamente, o Sistema Nacional de Trânsito deveria funcionar com um conjunto de engrenagens devidamente encaixadas e de forma orquestrada, mas sabemos que a realidade é outra. Sem dúvida, esse desencaixe gera transtornos” 
Marcelo José Araújo, advogado e especialista em trânsito 

 

A Federação Nacional das Associações de Caminhoneiros e Transportadores (Fenacat) acompanha de perto as questões e programa a articulação com a Câmara dos Deputados e outras instâncias para solução dos problemas. “Vamos apresentar os relatos ao deputado federal Nelson Marquezelli e pretendemos criar uma bancada específica do setor de transporte rodoviário de cargas na Câmara e no Senado, para tratar dessas e de outras situações que impactam diretamente a atividade profissional
”, anuncia o presidente da Fenacat, Luiz Carlos Neves.

O advogado e especialista em trânsito Marcelo Araújo diz ainda que podem ser tomadas providências judiciais para cumprimento dos prazos e, se a demora gerar prejuízos, ingressar com as devidas ações indenizatórias. “Teoricamente, o Sistema Nacional de Trânsito deveria funcionar com um conjunto de engrenagens devidamente encaixadas e de forma orquestrada, mas sabemos que a realidade é outra. Sem dúvida, esse desencaixe gera transtornos ”, conclui.

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