Trabalho noturno menos oneroso

Governo do Estado de São Paulo considera reduzir as tarifas de pedágio para os caminhões que rodam à noite. Objetivo é aprimorar a utilização das estradas.

Capa / 06 de Novembro de 2019 / 0 Comentários
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Os transportadores que circulam por São Paulo poderão encontrar uma nova realidade em 2020. O governo estadual estuda uma proposta de redução da tarifa de pedágio para caminhões à noite, a fim de otimizar a utilização das estradas. Se a medida for aprovada, o caminhoneiro que rodar das 22h às 6h terá direito a um pedágio com valor diferenciado. O percentual de redução ainda não foi definido. Levando em conta a origem, o volume e o destino dos principais produtos transportados, o governo paulista pretende estabelecer rotas ideais para o tráfego de cargas.

“Além de melhorar o trânsito e evitar acidentes, queremos diminuir o custo Brasil, que prejudica a competitividade dos nossos produtos”, disse, em nota, o secretário estadual de Logística e Transportes de São Paulo, João Octaviano Machado Neto.

Para o especialista em mobilidade urbana José Aparecido Ribeiro, essa vantagem só é possível nas estradas de São Paulo. “Em outros Estados brasileiros, a implementação dessa proposta é inviável, pois eles não têm a mínima infraestrutura rodoviária, como, por exemplo, a duplicação. Há muitos problemas estruturais mais urgentes do que uma cobrança de pedágio diferenciada”, avalia Ribeiro.

Segundo a Pesquisa Origem e Destino, realizada pelo governo de São Paulo, a chegada e a saída de veículos da região metropolitana da capital pelas estradas aumentaram em cerca de 20% de 2007 a 2017. São aproximadamente 528 mil veículos transitando pelas rodovias que cortam a Grande São Paulo diariamente. Os caminhões representam 24% desse tráfego. Por conta do crescimento, sobretudo nos horários de pico, a formação de filas nos acessos à capital paulista faz parte do dia a dia dos condutores.

Impacto para o transportador

Se a redução da tarifa de pedágio for implementada, os profissionais das estradas deverão se planejar para uma nova rotina de trabalho. Dirigir à noite tem vantagens – como o trânsito mais fluido –, mas também reserva muitos desafios. A precariedade das estradas brasileiras e a diminuição da visibilidade são situações que exigem mais cuidado do motorista nesses horários.

A Lei dos Caminhoneiros (13.103/2015) estabelece que a jornada máxima de trabalho dos motoristas profissionais deve ser de oito horas diárias. Porém, é admitida a realização de duas horas extras ou, se houver acordo ou convenção coletiva, de quatro horas extras por dia.

Contudo, o caminhoneiro não pode dirigir por mais de cinco horas seguidas, sendo obrigado a fazer um descanso de 30 minutos, além do intervalo para almoço de, no mínimo, uma hora. A legislação também exige que, a cada 24 horas trabalhadas, o motorista tenha um descanso de 11 horas. Desse período, ao menos oito horas devem ser ininterruptas, enquanto o restante pode ser fracionado.

 

Segurança

Outro fator que pode dificultar a implantação do benefício noturno é a questão da segurança. À noite, os motoristas ficam mais vulneráveis aos roubos de cargas. No ano passado, de acordo com dados da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística), houve 22.500 episódios desse crime no Brasil.

O problema ocorre em todo o país, mas nos Estados da região Sudeste ele é mais corriqueiro: foram 22.200 casos registrados em 2018. Em função do risco elevado, em situações específicas, as seguradoras não garantem a cobertura no período noturno.

O governo de São Paulo, porém, assegura que, ao adotar o desconto nos pedágios, vai reforçar a segurança nas rodovias com mais policiamento nos corredores logísticos.

 

Ponto a ponto

A tarifa de pedágio reduzida à noite é inspirada em uma forma de cobrança inteligente. Há sete anos, o governo paulista implementou o Ponto a Ponto, um sistema em que motoristas pagam o pedágio proporcional ao trecho percorrido. A implantação foi gradual, mas não houve ampliação no número de estradas englobadas desde setembro de 2014, tampouco prazos para a implantação em novos trechos.

Atualmente, o Ponto a Ponto está instalado nas rodovias Santos Dumont (SP-75), em Indaiatuba; Governador Doutor Adhemar Pereira de Barros (SP-340), em Jaguariúna; Professor Zeferino Vaz (SP-332), em Paulínia; e Engenheiro Constâncio Cintra (SP-360), em Itatiba. Nessa última, o projeto foi implantado como piloto somente para usuários de alguns bairros.

Apesar da estagnação na quantidade de vias contempladas, segundo dados da Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp), o número de veículos que utilizaram o pedágio eletrônico na malha concedida cresceu 42,7% de 2010 a 2017, enquanto os que usaram as cabines manuais no mesmo período aumentaram 5%.

Chamado de free-flow (ou fluxo livre, na tradução literal), esse sistema é amplamente usado fora do Brasil – principalmente nos Estados Unidos, na Europa e no Chile, onde está um dos exemplos de maior eficiência. Os veículos não param para pagar o pedágio. Portais, com sensores e câmeras, registram a passagem deles, e a tarifação eletrônica permite o pagamento proporcional aos quilômetros percorridos na via.

 

Tecnologia como aliada

O consultor em Infraestrutura e Logística da Federação das Indústrias do Paraná, João Arthur Mohr, diz que a implementação de tarifas de pedágio diferenciadas à noite somente será possível por meio de sistemas inteligentes, como o free-flow, que permitem a programação de valores de acordo com o período e, inclusive, por faixa de rolamento.

“Nos Estados Unidos, por exemplo, em uma autovia, você nota que uma faixa tem uma fila enorme de veículos, pois não tem cobrança nela. Em outra, há um fluxo menor de carros aguardando, porque tem pedágio. E há pistas completamente liberadas, porque cobram um valor maior. Todos os veículos têm uma tag, e, assim que passam em um portal, a câmera registra. Também é possível comprar antecipadamente, pelo cartão de crédito, para usos pontuais das rodovias”, diz Mohr.

Esse sistema, de acordo com o especialista, é o caminho mais adequado para o Brasil, que tem dimensões continentais e permite uma cobrança mais justa de tarifação. Como exemplo, ele cita a via Presidente Dutra (BR-116), que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. Diariamente, nos quilômetros iniciais, passam mais de 300 mil veículos que não pagam tarifa, pois a praça de pedágio é adiante. “Se cobrassem R$ 0,50 no começo da rodovia, o faturamento seria de R$ 150 mil por dia, permitindo a sustentabilidade da concessionária e investimentos para os usuários”, sugere o consultor.

Ele ainda apresenta a situação inversa: no interior do Paraná, há cobrança de pedágio entre Araponga e Rolândia. Muitos moradores da segunda cidade vão para Araponga trabalhar, já que o município é um polo moveleiro no Estado paranaense, e pagam uma tarifa de pedágio referente a 70 km, mas, na verdade, percorrem somente 10 km para chegarem ao destino. Com um sistema ponto a ponto, essa situação seria resolvida.

 

Bom negócio coletivo

Mohr também explica que a cobrança de pedágio tem que ser justa para todos: o usuário deve pagar apenas pelo trecho percorrido e usufruir de uma infraestrutura segura, que permita fluidez e redução do custo logístico; a concessionária deve receber de acordo com o investimento realizado; e o governo precisa compartilhar a manutenção da estrutura rodoviária.

O presidente da Associação Brasileira das Concessionárias de Rodovias (ACBR), César Borges, é a favor da proposta de implantar tarifas diferenciadas para transportadores que rodam à noite. “Sem dúvida, isso vai melhorar a fluidez. Contudo, é fundamental reequilibrar os custos das concessionárias, pois haverá alteração da receita, e dos transportadores, já que eles possivelmente sofrerão com o aumento do valor do seguro da carga e com o impacto disso no dia a dia”, alerta Borges.

De acordo com o presidente da ABCR, no Brasil, a iniciativa do governo de São Paulo é pioneira, e ele acredita que o setor privado de concessões esteja preparado para propiciar eficiência na prestação do serviço. “É preciso oferecer segurança jurídica, porque há um excessivo papel dos órgãos reguladores – como o Tribunal de Contas do Estado [TCU] e o Ministério Público Federal [MPF] – que inviabiliza o trabalho das concessionárias”, afirma Borges.

Por isso, ele ressalta que o melhor caminho é o da responsabilidade compartilhada, em que empresas e governo atuam conjuntamente para minimizar os riscos inerentes aos projetos de concessão, como licenças ambientais, desapropriações e previsão de receita conforme o fluxo de veículos.

 

Empecilhos

A implantação do pedágio com tarifa reduzida à noite depende de ajustes nos contratos de concessões rodoviárias em curso ou de mudanças nos novos editais. Além disso, a possibilidade de a concessionária abrir mão das caras estruturas de praças, que incluem sistemas de recolhimento de dinheiro, por exemplo, e de não precisar ter funcionários 24 horas por dia para fazer o trabalho esbarra na legislação brasileira.

Uma das questões jurídicas do sistema free-flow diz respeito ao não pagamento do pedágio, que é custeado pelo concessionário. Não há, contratual ou legalmente, um sistema de garantias jurídicas contra a evasão. Por outro lado, o artigo 209 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) estabelece que essa conduta é uma infração passível de multa e de pontuação na Carteira Nacional de Habilitação (CNH). No entanto, é preciso que haja a atuação de uma autoridade policial, pois os empregados das concessionárias não têm poder de polícia nem são credenciados para autuarem os condutores que desrespeitarem o CTB. Já no sistema de pedágio por cancela, a fiscalização é facilitada em razão da própria barragem física na pista.

 

Incentivos

Se o Sistema Nacional de Identificação Automática de Veículos (Siniav) funcionasse, a cobrança de pedágio inteligente seria facilitada. Concebido pela Resolução 212/2006 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), o Siniav prevê a instalação de placas eletrônicas nos veículos, antenas leitoras, centrais de processamento e sistemas informatizados para posterior identificação do veículo pelas autoridades competentes.

Outro caminho para a utilização de tags para a cobrança de pedágio é o desconto gradativo para quem mais usa a rodovia. A ideia é que quem mora perto dos pontos de cobrança e precisa se deslocar de uma cidade para outra, ou os motoristas profissionais, dependentes das estradas, tenham algum tipo de amortização para que as tarifas não fiquem tão pesadas no orçamento.

Também é importante analisar valores diferenciados para as rodovias de pista simples e as duplicadas ou mesmo a permissão para o início da cobrança somente depois da duplicação da via. Para quem quer rodovias melhores e sem congestionamentos, é necessário verificar ainda a possibilidade de cobrar valores mais caros nas vias de trânsito rápido, aos moldes do que é praticado em Miami, nos Estados Unidos.

 

Experiências internacionais

Em qualquer lugar do mundo, a implantação do sistema free-flow vem acompanhada de garantias jurídicas pelo não pagamento da tarifa de pedágio pelo usuário infrator. Na Áustria, existe a previsão de um pedágio substituto no caso de haver evasão. Ele tem a função de desestimular o usuário a deixar de adquirir a tag antes de circular pelas rodovias. No país, há sistemas de pagamentos prévio e posterior, por quilômetro percorrido.

O Chile é um dos pioneiros no uso do free-flow na América do Sul, com larga utilização ao redor da capital, Santiago, cujas rodovias funcionam como um “rodoanel”. Inicialmente, havia uma previsão legal de multa de quase 40 vezes o valor do pedágio (mais juros e gastos judiciais) para quem não pagasse a tarifa. O montante final era repassado à concessionária. Em um primeiro momento, essa penalidade serviu para incutir um senso de responsabilidade na população. Posteriormente, no entanto, esse artigo da lei de concessões começou a ser questionado judicialmente: muitos magistrados, baseados na regra da proporcionalidade, passaram a afastar o valor da multa. Atualmente, ele é de, no máximo, cinco vezes o original e, em caso de reincidência, 15 vezes. O total não é mais revertido ao concessionário, mas, sim, a um Fundo Municipal Comum e à municipalidade responsável.

Os chilenos também começaram a refutar outra medida: o motorista inadimplente teria o registro fiscal compartilhado com instituições financeiras e outros serviços de crédito, o que lhe impediria de realizar diversas operações. Essa regra passou a ser questionada em juízo em razão da violação da privacidade dos usuários. O risco de calote no pagamento do pedágio, então, voltou a crescer. “A inadimplência por evasão de pedágio no Chile é muito alta, em torno de 6%. Para se ter uma ideia, no Brasil, esse percentual é de 0,5%”, compara o presidente da ABCR, César Borges.

Entre os lugares do mundo que dispensam as cancelas nos pedágios está a Flórida (EUA), onde as barreiras físicas não existem, tanto em caso de cobrança eletrônica a partir de tags como no de pagamento feito no local, muitas vezes emitido por máquinas. A infração é cobrada depois: câmeras capturam a placa e enviam a multa para o endereço de registro do veículo.

Já em Portugal, que tem diferentes modelos, há faixas que levam à cobrança no local (com cancela) separando-as daquelas com cobrança automática, sem bloqueios – sinalizadas com a placa “Reservada a Aderentes”, da tag eletrônica Via Verde.

Na França, mesmo quem tem pagamento eletrônico encontra cancelas em algumas rodovias expressas e precisa rodar em baixa velocidade até que a barreira suba, como nas rodovias brasileiras.

Na Argentina, onde também são utilizadas as cancelas, os motoristas podem passar sem pagar. Não por evasão, entretanto. Os contratos de concessão rodoviária estabelecem que as concessionárias devem liberar a passagem quando se formam longas filas. Em geral, a espera máxima vai de três a cinco minutos, a depender da rodovia.

 

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